Golpe de 64 em Ipiaú: Professor Albione relembra quando tentaram cassar o prefeito da cidade

 

O prefeito Euclides Neto ao iniciar sua gestão em Ipiaú(1963)

Ipiaú e o golpe de 1964: a tentativa de cassação do prefeito Euclides Neto

Com a intervenção militar, ocorrida em 31 de março de 1964, políticos de várias localidades do país enviaram moções em solidariedade ao presidente deposto, João Goulart, bem como notas em apoio à intervenção militar deflagrada em 31 de março de 1964. 

Em Ipiaú, a Câmara Municipal de Vereadores enviou telegrama saudando os militares à frente do governo federal.

Ao contrário, o prefeito do município de Ipiaú, Euclides Neto, no “calor dos acontecimentos”, envia telegrama em solidariedade ao presidente João Goulart. Nesses primeiros momentos, em apoio ao golpe, ocorre uma passeata em Ipiaú, organizada pelo padre Flamarion Oliveira, para festejar a deposição do presidente João Goulart pelas forças armadas. 

Nesse ato, os participantes, liderados pelo padre da cidade, proferiam palavras depreciativas contra o presidente deposto e os comunistas, segundo ele, “causadores de desordem” no Brasil. Durante a passeata, os manifestantes se postaram em frente da Justiça do Trabalho em protesto, por considerá-la um órgão comunista capitaneado por um juiz subversivo: Washington Navarro Pinto. Alguns fazendeiros, junto com o padre Flamarion, lideraram uma passeata festejando a intervenção militar e ameaçando um “quebra-quebra” no prédio da Justiça do Trabalho e na sede da Associação dos Trabalhadores Rurais de Ipiaú.

A edição do primeiro ato Institucional (AI), em seu conteúdo, teve como propósito principal a cassação de líderes políticos que poderiam significar empecilho para execução dos planos do novo governo. Com as cassações de vários políticos de referência nacional, que se opunham ao governo militar, afastavam-se do cenário político os prováveis candidatos, de oposição ao governo, que iriam participar das eleições diretas para governo dos estados que aconteceriam em 2 de outubro de 1965.

 Em 11 de abril de 1964, a junta militar apresenta aos congressistas, dentre eles os suplentes empossados após cassações de alguns deputados, o general Castelo Branco, Chefe do Estado-Maior do Exército do governo João Goulart, que seria indicado para assumir a presidência da república, em substituição à junta militar. Após aprovação do Congresso Nacional, através da eleição indireta, Castelo Branco é empossado como novo Presidente da República.

 Inicialmente, o governo militar afirma que sua estada no executivo seria apenas enquanto fosse estabelecida a “ordem nacional” que estava sendo “ameaçada” pelo avanço das “ideias comunistas subversivas”. Após as medidas que visavam embargar a expansão comunista, haveria o retorno ao regime democrático pautado nas eleições diretas em todos os níveis. Em discurso de posse, proferido ao Congresso Nacional, o presidente Castelo Branco externa sua posição de defesa das instituições legalistas e democráticas.

Ainda no mês de abril, alguns dias após a saída de Jango, dirige-se a Ipiaú uma junta militar para instalar Inquérito Policial Militar-IPM contra o prefeito Euclides Neto, sob a suspeição de “práticas comunistas”. Os militares, armados de metralhadoras, dirigiram-se ao prédio da prefeitura em busca do prefeito. 

Ao centro o Capitão Ávila, um dos militares enviados para Ipiaú

Jorge Modesto, promotor de justiça, acompanhou o interrogatório. Os questionamentos foram encetados com perguntas tratando do telegrama enviado pelo prefeito de Ipiaú em solidariedade ao presidente deposto; também o questionam sobre a desapropriação que originara a Fazenda do Povo.   

Assim como em Ipiaú e em outras cidades brasileiras, no município baiano de Esplanada o prefeito foi alvo de intervenção militar após o golpe de 1964. Segundo Thiago Machado de Lima, em Esplanada, onde o prefeito Erickson Orlando de Carvalho (Dr. Neno- PSP) também havia distribuído lotes em áreas urbanas e rurais para pessoas carentes, alinhado ao presidente João Goulart, despertou-se a insatisfação dos setores conservadores políticos e religiosos da sociedade esplanadense. 

Em oito de abril de 1964 uma tropa do Exército, comandada pelo capitão Antônio Bendocchio Alves Filho dirigiu-se ao município de Esplanada para investigar o prefeito, Dr. Neno. Diante da sua ausência durante a estada das forças militares em Esplanada, o Capitão Bendocchio determina que a Câmara Municipal de Vereadores decrete vago o cargo do prefeito municipal. Após a realização da sessão extraordinária, aprovou-se a resolução transferindo a gestão do município para o edil José Moreira de Souza, presidente da Câmara de Vereadores, antes mesmo da conclusão do Inquérito Policial Militar (IPM) contra o Dr. Neno. 4

Em Vitória da Conquista, município situado no Sudoeste da Bahia, os militares também deixaram suas marcas indeléveis na política com o golpe de 1964. Segundo José Alves Dias, em cinco de maio de 1964, o capitão Antônio Badochhio Dias Filho chega em Conquista com cerca de cem militares para a instalação de Inquéritos Policiais Militares, após denúncias contra militantes de esquerda. Logo no dia seguinte foram presos militantes do PCB, membros da Frente de Libertação Nacional (FLN), suplentes de vereadores, vereadores, comerciantes, estudantes, professores, um juiz de Direito, além do prefeito de Vitória da Conquista, José Pedral Sampaio, acusado de alinhamento ideológico com o presidente deposto. 

Em Vitória da Conquista, o episódio mais trágico ocorreu com o vereador Péricles Gusmão Régis, filiado ao Movimento Trabalhista Renovador (MTR), após um longo interrogatório nas dependências do 9º Batalhão Militar de Vitória da Conquista, o vereador é encontrado sem vida. Segundo José Dias, “Após longo período de interrogatório, que vararam a madrugada, o corpo dele foi encontrado na cela com cortes no pescoço e nos pulsos. O médico legista declarou “morte por anemia aguda devido à hemorragia externa, causada por secção de vasos sanguíneos-suicídio’ “. 6 No entanto, essa versão oficial não foi aceita pelos familiares e amigos do edil conquistense, havendo forte suspeita de assassinato.  

No município de Una, localizado no Sul da Bahia, o prefeito Libberalino Barbosa Souto, no embalo dos eventos após os eventos de 31 de março de 1964, sofrera uma campanha oposicionista sistemática por parte da Câmara de Vereadores, tentando cassá-lo da chefia do executivo municipal, culminando com abertura de processo de Impeachment pelos vereadores em dezembro de 1965. Segundo Soanne Cristino Almeida, a razão principal de tentar tirá-lo do cargo eram as disputas políticas e rivalidades de grupos locais. No entanto, “no dia 9 de dezembro, chegam as Forças do Exército da Bahia para reempossar Libberalino, com decisão judicial, cujo argumento exarava a ilegalidade do ato de impeachment, em virtude da votação na Câmara ter contado com o sufrágio de Acácio Índio, que já havia renunciado”.

Logo no primeiro ano de sua administração, Euclides Neto (1925-2000) demonstra uma opção pelos setores menos favorecidos da sociedade. Com sua política voltada para as camadas sociais mais carentes, desapropriando e socializando áreas na zona urbana e rural, passou a ser visto com rejeição pelos setores elitizados da sociedade ipiauense, sobretudo alguns fazendeiros abastados, políticos conservadores e o pároco da cidade, Pe. Flamarion Oliveira, um dos principais antípodas das posições políticas adotada pelo prefeito de Ipiaú. 

Euclides Neto ao lado do Padre Flamarion, um dos seus detratores.

 Nos primeiros meses de investigação as camadas populares da sociedade (aguadeiros, lavadeiras, prostitutas, trabalhadores rurais, donas de casa etc) se mobilizaram espontaneamente oferecendo seus depoimentos em defesa do prefeito. Tratando desse período, Antonio Wilson dos Santos, advogado e ex- posseiro da Fazenda do Povo, relata: 

Quando o Exército veio abordar Dr. Euclides, inclusive nessa ocasião eu estava com doze para treze anos, então corria um boato na Faz. do Povo que o Dr. Euclides poderia ser preso pelo Exército, justamente porque era comunista e havia um contingente humano com armas na mão para defendê-lo. Aí ele convocou o chefe do exército para ir à Faz. do Povo e ver qual era o exército que ele tinha. E lá ele teve a oportunidade de mostrar o contingente humano formado por pessoas humildes, morando em casas de palhas, cada qual com seu pedaço de terra vivendo dignamente.

Durante esse processo de investigação, o prefeito e sua família passam por um período de grande apreensão e incertezas quanto ao seu futuro. Alguns livros publicados por Euclides Neto, como Os Magros, à época considerado de teor subversivo, são enterrados ou queimados por sua mãe, Edite Teixeira. Ela acreditava que desta forma poderia proteger seu filho diante da iminente ameaça do Exército prende-lo. 

Com a chegada dos militares em Ipiaú, alguns participantes dessas reuniões se dirigiram para Salvador, onde atuavam em movimentos de contestação ao regime autoritário. Em 1964, após saber da existência de opositores do governo militar em Ipiaú, Fernando Gonzáles, membro da organização contra a ditadura, chamada Ação Popular (AP), dirige-se de Salvador para Ipiaú em busca de militantes para o engajamento na organização anti ditadura na qual fazia parte. O jornalista e político Emiliano José relata acerca da estada de Fernando Gonzáles em Ipiaú nesse período:

Um dia ainda em Ipiaú, aparece Fernando Gonzáles Passos, à procura dos que tinham pichado muros pelo Movimento contra a ditadura. Rui Patterson era um dos principais organizadores da pichação. Além dos muros, Rui havia pichado alguns jegues, que andavam soltos pela cidade. O prefeito Euclides Neto não deixava prender os jericos, e havia muitos deles nas ruas. Tornaram-se pelas mãos de Rui e de seus companheiros, outdoors ambulantes contra o regime militar. […] Rui torna-se um simpatizante da AP [Ação Popular], ao lado de outros companheiros de Ipiaú. 

No último depoimento que prestou aos militares, ao chegar ao quartel militar, próximo ao Ginásio Central da Bahia, o prefeito de Ipiaú foi recebido pelo Major Galvão tendo em suas mãos um volume contendo todas as peças do processo, inclusive o romance Vida Morta, publicado em 1947. Na referida obra há uma incisiva crítica contra as Forças Armadas e seus arsenais bélicos, produzindo carnificinas durante a 2ª Guerra Mundial; também há uma insatisfação do personagem Antônio, estudante do Curso de Direito, por ter sido convocado compulsoriamente ao serviço militar. 

No processo, também estava a declaração de imposto de renda de Euclides Neto, onde se observava um decréscimo em sua renda durante sua gestão, sinal de probidade pública e responsabilidade com seus dependentes, pois, além de ter despesas com esposa e cinco filhos, como arrimo de família, também assumia a responsabilidade em criar seis irmãos menores e outros parentes que viviam às suas expensas.

Ao longo do interrogatório, ao ser questionado o que pensa sobre a reforma agrária, afirma ser favorável por princípio. Quando perguntado sobre a Fazenda do Povo, afirma ter sido reforma agrária. Imediatamente, ao ouvir esta afirmação, o major, um dos interrogadores exclama: “Estão vendo? Estão vendo? Reforma agrária é negócio de comunista.” 10 No interrogatório, o Major Castro lhe pergunta sobre as medidas tomadas com relação à política agrária no município. Sobre este tema, Euclides explica:

Criamos incentivos para os que moram na roça, dando-lhes 20%. Aos que dão terra para os trabalhadores plantarem mais 20%, se o fazendeiro mora com os filhos, cada um destes tem mais 1% de desconto. Por outro lado, se já possui 200 hectares e compra mais terra o imposto de transmissão vai subindo gradativamente, de acordo com a área que já tem. Aumentei sensivelmente os tributos territoriais, isentando as pequenas.  Com tal sistema duplicamos a renda da prefeitura isentando 60% dos pequenos agricultores. 

Em dado momento do interrogatório, de forma incisiva, perguntaram-lhe se havia pertencido ao Partido Comunista, quando residia em Salvador. Sem tergiversar, responde que sim. Em seu livro, Euclides Neto comenta a reação dos inquisidores após assumir sua militância no PC: “Bem. Porque se o senhor negasse, teríamos razões para duvidar de todas as suas afirmativas até aqui. É que temos prova da sua participação ativa”. 

Após 6 horas de interrogatório, um dos militares brada: “que ele é comunista, não temos dúvida… mas como tirar um homem desses?” . Ao desfecho do interrogatório, o prefeito de Ipiaú foi liberado. Entretanto, recebera a recomendação dos militares que delatasse quaisquer comunistas que porventura estivessem em Ipiaú.

Em Ipiaú, além do prefeito, também foram indiciados pelo Exército as seguintes pessoas: Deusdedith Cardoso da Silva (na época era o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipiaú), Washington Navarro Pinto (na época era o Juiz do Trabalho, em Ipiaú), Aurélio Pereira de Souza (na época era contabilista do Banco do Brasil, em Ipiaú), Edgard da Silva Freire (na época era o gerente do Banco de Fomento do Estado da Bahia, em Ipiaú), Walter Paes (na época funcionário do Banco do Brasil, em Ipiaú) e Anísio Cesar Palafoz (sem profissão identificada).  

Na certidão de conclusão dos IPMs instaurados em Ipiaú pelo Ministério da Guerra – IV Exército – 6º Região Militar, o juiz- auditor, Paulo Jorge Simões Corrêa, exarou sentença favorável ao arquivamento de cinco dos sete processos, inclusive absolvendo o prefeito Euclides José Teixeira Neto. Entretanto, no despacho que tivemos acesso estava indefinida a situação dos investigados Deusdedith Cardoso da Silva e Anísio Cesar Palafoz. Em função da falta de fontes, não foi possível identificar o desfecho dos seus processos. 

Portanto, nesse episódio de coerção social do Estado autoritário diante das concepções distintas de sociedade, demostra a pluralidade ideológica existente na mesma sociedade se confrontando com um governo despótico, cerceador do direito à divergência. 

Tratando do famigerado ano de 1964, Albene Mirian Menezes Klemi rememora alguns acontecimentos que marcaram este período sombrio durante a sua infância em Ipiaú:

Dois outros acontecimentos marcantes daquela década colaboraram para firmar a aura de fibra da cidade. Um climático, com consequências devastadoras para a população pobre – a já aludida enchente que derruba a velha Igreja católica, destrói a aglomeração dos Dez Quartos e parte da Rua da Batateira, deixa centenas e centenas de desabrigados, dentre outros estragos de vulto. Outro político:  o golpe de estado que destituiu o governo do presidente João Goulart. Ambos são ensejos para fazer do jovem prefeito o herói local. À catástrofe climática com impacto social ‘Dr. Euclides Reage’, principalmente, com as suas aludidas reformas, dentre outros feitos. Das acusações e perseguições ideológicas e ocupação da Prefeitura Municipal por tropas da polícia do Exército, ele se sai de forma democrática e destemida.

Corre naqueles idos a notícia que seu romance ‘Os Magros’ fora incluído em uma exposição feita pela ditadura com as obras ditas subversivas, no Teatro Castro Alves, na capital.

Cremos que a chegada dos militares em Ipiaú tenha sido um dos momentos de maiores tensões vividos pelo prefeito de Ipiaú, sobretudo dado a iminente possibilidade de ser preso pelo Exército, deixando sua esposa e cinco filhos menores numa situação delicada. Portanto, diante da possibilidade de separa-lo de sua família, o prefeito de Ipiaú avaliou a possibilidade de entregar o seu cargo.

O inquérito Policial Militar que investigou Euclides Neto e outros supostos militantes de esquerda em Ipiaú durou de abril de 1964 a dezembro de 1965. O último depoimento que Euclides Neto prestou aos militares ocorreu em Salvador. A cassação do seu mandato não foi efetivada. Entretanto, até o fim do seu mandato, em abril de 1967, continuou sendo patrulhado pelo governo militar. 

Albione Souza Silva – Professor, historiador e escritor. Mestre em História pela UNEB – Alagoinhas. Autor do livro “Os Despossuídos da Terra” publicado pela Via Litterarum Editora, em 2021, e da obra infantojuvenil denominada “Cido, O Pequeno Cidadão”, pela Via Litterarum Editora.


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