Samio Cássio conta a história da ipiauense Léa Simões, em homenagem ao mês da consciência negra

Arquivo pessoal

Léa Simões: mulher preta e os enfrentamentos aos marcadores de raça gênero e classe

Dona Léa possui várias experiências, em movimento sociais, dentre eles o MST, foi representante do sindicato dos garis, participou do movimento de ocupação no qual originou o bairro São José Operário, com o intuito de adquirir um terreno para construir seu lar para criar suas filhas.

Essa pesquisa é baseada na micro história do município de Ipiaú, investigação que foi desenvolvida através do diálogo com bibliografias e a coleta de dados por meio de fontes orais. Dessa maneira, é importante conhecer a trajetória dessa mulher destemida no sentido mais ávido da palavra, bem como suas ações/lutas são inspirações para novas gerações.

Léa Simões dos Santos, nasceu no dia 22 de junho de 1949, na cidade de Buerarema-Ba, o nome de seu pai é Nicodemus Simões dos Santos, tendo por mãe a senhora Geraldina Pereira da Silva. Sua história e trajetória é marcada por vários cruzamentos interseccionais, teve que morar em casa de mulheres na adolescência, anos depois ela veio residir no município, onde participou da ocupação do terreno que pertencia ao Colégio Estadual de Ipiaú, juntamente com Adenor dos Reis Soares, seu companheiro Jorge, entre outras pessoas.

Ela também trouxe o MST para Ipiaú, e foi a fundadora do sindicato dos garis na cidade, ela tem quatro filhas, a terceira (im memoriam), um filho e, da mesma forma, criou o neto mais velho como filho, além de netos/as e bisneto/as. Léa Simões relata que:

“Comecei trabalhar com 5 anos de idade, a gente levantava de madrugada por volta de duas horas da manhã, para ir à feira vender os produtos da roça, morávamos na zona rural, distante duas léguas da cidade. Aos 16 anos saí da casa de meus pais, fui para casa de meus avós, mas, não tendo apoio, tive que viver por algum tempo em casa de mulheres, tinha muitas dificuldades para criar minha primeira filha, eu era muito nova, contudo, superando a primeira etapa da minha vida tive outras filhas, fui viver com Jorge pai da minha filha mais nova e do meu único filho, viemos morar em Ipiaú e, dessa maneira, participei da ocupação de um terreno urbano que pertencia ao colégio Estadual de Ipiaú, tinha como objetivo construir uma casa para viver com minha família, eu trouxe o MST para Ipiaú, fui a fundadora do sindicato dos garis com o amigo Lourival “(relatos de Léa).

Mesmo com tantas dificuldades financeiras sua mãe, tinha enorme preocupação com a educação dos filhos/a, dito isto, ela pagou seis meses de banca escolar para Léa e seus irmãos, ela teve pouco acesso à escola formal, esse contato com o ensino sempre foi negado a população negra no Brasil, também iniciaram as atividades laborativas na infância, na zona rural para ajudar a sua família, eles estudaram apenas seis meses aprenderam a ler e escrever. Léa Simões. (2024) destaca que:

Naquela época filho de pobre não tinha direito de estudar, aí apareceu uma professora de pinote, minha mãe trabalhou e pagou para ela nos ensinar, eu e meus três irmãos, aprendemos o ABC, cartilha, primeiro e segundo ano em seis meses, a gente dormia com os livros debaixo da cabeça, existia uma crença que assim aprendia mais rápido.

A história de Léa contada pelos moradores de Ipiaú

A história e a trajetória de dona Léa Simões dos Santos está presente na memória coletiva das pessoas do município de Ipiaú. Halbwachs (1990, p. 53, 54) relata que “a memória coletiva, envolve as memórias individuais, mas não se confunde com elas”. Nesse sentido, para construir a narrativa sobre a história de dona Léa Simões dos Santos, recorro aqui as falas dos colaboradores, moradores do municipio de Ipiaú que conhecem e convivem com esta mulher destemida, que carrega em seu ser o destemor para conquistar seus objetivos nem sempre isto foi possível, mas ela nunca se negou perante os desafios da vida, dessa forma, diante dos sofrimentos dos colegas de trabalho, muitos garis adoeceram, alguns nem ganhavam salários.

Dona Léa se destacou na luta pela melhoria salarial dos garis no município de Ipiaú, fazendo reivindicações, por condições mais dignas desse grupo ao qual ela fazia parte, mas apesar das dificuldades existentes ela e outros companheiros fundaram o sindicato dos garis e conquistaram diversas vitorias como a regularização do salário, do adicional de insalubridade e causas judiciais.

As motivações para a fundação do sindicato eram as péssimas condições salarial e de trabalho dos garis, alguns não recebiam nenhum salário mínimo, desse modo, Léa me procurou devido eu gostar de estar envolvido com as causas operários, dessa forma, eu pedi que ela fosse à salvador providenciar umas atas, fizemos uma junção, e criamos o sindicato, obtivemos várias conquistas, exemplo, muitos garis passaram a ganhar um salário, também tiveram direito um adicional de salubridade. Quando iniciou-se o sindicato dos garis demos entrada em diversas ações na justiça do trabalho, deixando o município amedrontado com as conquistas das diversas ações trabalhistas (Lourival. A. S. Informações verbais, 2024).

Ressalto que nas narrativas acima tanto da pesquisada, como dos outros colaboradores foram utilizados a história e a memória como recursos para fazer o registro da história e da trajetória desta mulher, destemida e guerreira. Dona Léa perdeu uma filha de forma trágica que marcou sua vida e de toda sua família.

Nos primeiros anos da década 1990, o falecimento de minha terceira filha, ela morreu em uma piscina vítima de afogamento, minha filha era uma menina preta linda, a fazenda ficava próxima ao centro de Ipiaú. Devido a forma que ela faleceu, recorri a justiça e a imprensa local da época, não obtive sucesso, muito pelo contrário fui perseguida por pessoas grandes da cidade e até por agentes da segurança pública, mas, um jornalista da capital baiana que estava em Ipiaú, tive contato com o mesmo e posteriormente, ele divulgou o que estava acontecendo comigo, porém, não tive como provar um possível crime, mas me senti um pouco aliviada devido a repercussão que teve, eu sou uma mulher danada não baixo minha cabeça por nada e para ninguém ( Relatos de Léa verbais, 2024).

Muitas mulheres superaram as violências impostas pela sociedade, deixando legado de resistência e enfretamento ao racismo, é fundamental reconhecer como dona Léa, desempenhou um papel na luta por direitos, reconhecimento e igualdade. Mesmo tendo vivenciado tantos momentos de tristeza, como o falecimento da sua filha.

Contribuições do Movimento Sem Terra em Ipiaú e os caminhos da Solidariedade

Mediante as coletas de dados foi constatado que a senhora Léa Simões, é uma mulher acolhedora e afetuosa com outras mulheres, acolhendo e colaborando no que era possível. Na narrativa do colaborador, ficou constatada essa veracidade, tendo em vista, que sua mãe foi muitas vezes acolhida pela senhora Léa, dentre outras mulheres do bairro são José Operário, é nítido que ela sempre foi uma referência para outras mulheres.

Dona Lea é uma legítima representante da comunidade local na luta por melhorias na comunidade, lutando contra exploração de mulheres, denunciando e acolhendo essas mulheres vítimas de violência de todos os níveis. (Minha mãe foi uma das mulheres que teve diretamente o apoio e acolhimento de dona Léa). Infelizmente muitos não conhecem a história extraordinária dessa mulher destemida. Agradeço a Deus pelo privilégio de ser parte dos frutos plantados por essa mulher extraordinária ( Nestor Rocha, relatos verbais, 2024).

Na narrativa do colaborador acima fica evidenciado que dona Léa sempre esteve à frente pela busca de direitos em favor da população desfavorecida. De igual forma, foi atuante na ocupação de algumas fazendas da região, tendo por objetivo a reforma agrária. Devido a alguns impasses teve que se retirar do movimento, pois ela tem uma vida ativa na área urbana, “hoje em dia estou afastada do movimento, apesar das contradições o movimento é justo, pois todos nós somos sem terras, quem tem terras no Brasil, são os latifundiários” ( L. S. Informações verbais, 2024).

“Quem trouxe o MST para Ipiaú, foi eu, participei de algumas ocupações de fazendas de cacau na região, como, a fazenda cascata no município de Ituberá, fazenda Coroa Verde em Barra do Rocha, Dois Amigos etc., participei de muitas reuniões com companheiros do movimento”. (relatos de Léa Simões, 2024).

Na fala da colaboradora fica evidenciado que dona Léa se destacou como líder do MST ao trazer o movimento para a cidade de Ipiaú. Essas caractériscas são marcas as quais atravessam o povo preto, a historiografia brasileira revelam esses traços de empatia das mulheres negras, a consciência da exclusão da mulher negra é a mola propulsora, para o surgimento de organizações sociais, como o movimento negro entre outros, tudo isto, com o intuito de oferecer para elas os espaços de direitos historicamente negados (CARNEIRO, 2011).

Léa: sempre tivemos a oportunidade de vê-la envolvida nas causas sócias da população menos favorecida, ela atuou como uma representante de nosso povo. Seu trabalho na luta com os trabalhadores rurais sem terra foi algo que nos marcou profundamente, ela estava inteiramente envolvida com a causa e chegou a viver literalmente em barraca de lona correndo riscos, mas acreditando que um dia aquela população estaria com seu pedaço de terra. Hoje celebramos essa vitória com o assentamento dois amigos ( Nestor Rocha, relatos verbais , 2024).

A solidariedade entre as mulheres pretas são marcas históricas, elas carregam ao longo do tempo, tudo indica que desde o período escravocrata no Brasil, elas são solidárias umas com as outras, bem diferentes de outras mulheres que pautavam suas reivindicações em outras agendas, porém, as mulheres pretas sempre foram acolhedoras e empáticas. O colaborador N.J, deixa isto muito nítido em suas narrativas acima, a sororidade reivindica o reconhecimento de atitude solidárias e colaborativas presentes nas relações. Santana (2017) destaca que:

[…] Essa solidariedade é marca das relações entre as mulheres afrodescendentes. O exercício desse sentimento de irmandade feminina que perpassa essas narrativas aponta para uma estratégia de resistência e empoderamento desse grupo que, tanto na ficção, quanto na vida real, se uniram/unem para a preservação das tradições culturais afro-brasileiras e manutenção de uma rede de apoio, visando à superação das dificuldades cotidianas (SANTANA, 2017, p. 03).

A problemática do acesso a terra no Brasil remonta ao período colonial, quando as terras foram distribuídas entre os colonizadores, do mesmo modo, no período imperial, a Lei de Terras não resolveu os problemas, dessa forma, pessoas negras e indígenas continuaram excluídos do acesso a esse bem comum, porém, poucos possuem grandes propriedades rurais (latifúndios) no país. Por outro lado, o contingente de pessoas sem terras é enorme na nação brasileira, com o fortalecimento das políticas fundiárias poderá resolver essa injustiça histórica. De acordo com o IBGE (2017):

Estrutura fundiária marcada historicamente pela exclusão dos povos indígenas e dos africanos e descendentes de africanos escravizados. Nesse contexto, a análise da estrutura fundiária brasileira se articula, profundamente, com as relações sociais de produção e com o uso econômico que a sociedade e o Estado fizeram dos seus recursos naturais a começar pela terra (IBGE, p .47).

Câmara Municipal de Ipiaú: um sonho não vivido por Léa Simões

Léa Simões, desejou por algumas vezes ser eleita vereadora. Neste sentido, candidatando-se por duas vezes, Partido dos trabalhadores ( PT ) nas eleições municipais de 1996 e 2004. Seus atravessamentos sócio raciais foram os impedimentos para ela não ser eleita? Destacando que a câmara municipal é um espaço majoritariamente dominado por homens, sendo que poucas mulheres foram eleitas ao longo dos anos, de 1936 a 2024 foram apenas 14 mulheres que conseguiram um mandato de vereadora na câmara municipal de Ipiaú-BA

Neste sentido, sem condições econômicas ou apadrinhamento é muito difícil para as mulheres negras acessarem os espaços políticos.

Ela foi incentivada pelo saudoso doutor Adilson Duarte ele queria ver as pessoas crescerem, a concorrer uma vaga como vereadora na câmara municipal de Ipiaú-Ba, mas, ela não teve o apoio dos colegas, você sabe que a pessoa pobre e negra é muito difícil, mas, valeu a pena ela ter saído, toda experiência é válida, foi uma pena ela não ter ganhado, ela não é uma mulher de ficar silenciada, com seu poder de persuadir as pessoas, teríamos uma pessoa combativa na câmara municipal, mas, hoje ela não quer ser mais, devido a idade ( Relatos de Lourival, 2024).

Esta investigação evidencia a atuação de dona Léa Simões dos Santos, mulher que enveredou pela caminhada dos movimentos sociais, criando formas de resistência para suprir suas necessidades e da sua família, e ao mesmo tempo dar o aporte para seus companheiros de trabalho no município de Ipiaú.

Nesse sentido, conhecer à história de dona Léa Simões dos Santos, mulher negra com muitas experiências em movimento sociais, aos quais ela ajudou a fundar, como o MST e o sindicado dos garis do munícipio de Ipiaú, além de ser uma inspiração para as mulheres mais jovens de Ipiaú, da Bahia e quiçá do Brasil que ao enveredar pela luta e pela busca de dias melhores para as mulheres, sobretudo, as negras. A análise da trajetória de vida e lutas é importante para a compreensão e o conhecimento da experiência histórica dessa mulher negra e sua participação nos circuitos sociais e políticos da cidade.

Essa investigação também nos oferece a possibilidade de verificarmos que é possível o ser humano habitar em um mundo mais solidário, sendo que as vivências de Léa são provas incontestáveis que as práticas da sororidade entre mulheres negras é um lugar comum, tendo em vista que os marcadores interseccionais são retroalimentados pelo racismo estrutural.

Samio Cassio é professor e historiador


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