Professor Albione comenta obra de Euclides Neto que aborda tensões sociais nas roças de cacau do sul da Bahia

Capa da primeira edição do romance O Patrão. (1978)

Foto: Pexels

A obra O Patrão ocupa um marco na retomada literária de Euclides Neto após 17 anos da publicação de Os Magros, em 1961.

Terminado esse interregno, com O Patrão, em 1978, seu autor retorna às temáticas das questões fundiárias e das tensões sociais no campo, marcantes no contexto pré-golpe de 1964.

É importante salientarmos da distância entre o momento da escrita de O Patrão, final da década de 1970, com toda influência do momento histórico nacional que passa a se aproximar das pautas políticas em defesa da anistia e abertura política, possibilitando a volta de exilados que se encontravam fora do país. Esse movimento histórico revigora na pauta dos intelectuais e políticos de esquerda, as demandas sociais e bandeiras interrompidas bruscamente em 1964 com o golpe.

 Em O Patrão, o enredo se desenvolve a partir do drama social vivido pelo vaqueiro Tomás e sua numerosa família formada por seus dez filhos e sua esposa Lindaura.  Neste romance emergem as agruras e desditas dos trabalhadores rurais numa fazenda de 4 mil hectares – com produção de cacau e criação de gado, em Ipiaú – no sul da Bahia. 

Na estampa da capa da primeira edição de O Patrão, Euclides Neto apresenta, como cartão de visita da obra, uma imagem agressiva, impactante, tosca, evidenciando a face desfigurada e ensanguentada do patrão. Como um alerta aos gananciosos latifundiários que oprimem e exploram seus trabalhadores sem imaginarem as possíveis reações dos oprimidos.

No primeiro capítulo de O Patrão o narrador revela a intenção do vaqueiro Tomás em vender uma vaca velha, doente, gabarrenta, de pouco valor, de propriedade do seu patrão, o fazendeiro Seu Casimiro, com o intuito de suprir as necessidades básicas de sua família diante do parco salário recebido:

“Há muito vinha se queixando ao patrão que o ordenado não dava. Em casa eram dez bocas pra dar de comer; com ele e a mulher, doze. Bem verdade, que poderia tirar uns litros de leite a fim de completar a ração; mas na hora de comprar o metro de pano, a coberta dorme-bem, uma bobagem qualquer, cadê o dinheiro? Quando os meninos eram menorzinhos, iam ficando buguelos, as meninas com calcinhas encardidas. As mais velhas – por falta de sorte eram as fêmeas – já tinham virado mulher. Queriam vestidos e não poderiam aparecer assim sem roupas”. 

Vale a pena ressaltar que o período da narrativa da obra O Patrão, publicado no final dos anos 1970, remonta como representação o cenário reconfigurado do período histórico de centralidade das questões agrárias emergentes nos primeiros anos da década de 1960, conforme mencionamos no parágrafo anterior. 

Na obra O Patrão, logo no primeiro capítulo, trata-se da repulsa dos patrões contra o Sindicatos dos Trabalhadores Rurais e a Justiça do Trabalho. Não raro, trabalhadores rurais que prestavam queixa na Junta Trabalhista, ou mesmo membros do sindicato dos trabalhadores rurais tinham suas integridades físicas ameaçadas ao pleitearem seus direitos trabalhistas. Tal situação coercitiva intimidava os trabalhadores rurais, temerosos em sofrerem represálias dos poderosos produtores de cacau:

“Tomás não acreditava muito naquela Justiça e no Sindicato. Sabia que o encarregado da Associação de Ipiaú tomara porrada a mando de um fazendeiro. E como se tivesse voltado para reorganizar os trabalhadores, recebera um tiro pelas costas, que o deixara no barranco do Rio das Contas, feito morto. Por último, os fazendeiros – Padre Flávio à frente – se uniram e numa marcha de valentes foram ao casebre do dito e não deixaram tampa sobre panela. Cama máquina de escrever, escrivaninha viraram pedacinhos de coisas. Até as telhas viraram cacos. Nem a mulher de barriga- na- boca escapou. Nem tempo de apanhar a camisa teve. Para encurtar a história, apareceu um sujeito do tamanho dele, da cor dele, com a cara e as mãos queimadas de mistura com pneu de carro. Até hoje a polícia não descobriu nada”. 

Tratando da natureza precária das relações de trabalho praticadas na região cacaueira nas décadas de 1960 e 1970, Amilcar Baiardi, na obra Subordinação do trabalho ao capital na lavoura cacaueira, afirma que “A relação de assalariamento de força de trabalho despojada dos meios de produções se dá em todas as fases do processo produtivo sendo a forma mais comum o contrato verbal”. 

Buscando salientar na narrativa as idiossincrasias dos trabalhadores rurais, Euclides Neto apresenta em sua obra o olhar dos silenciados e excluídos da história tradicional, volta-se para os trabalhadores que, com seu sangue, suor e lágrimas, geravam a riqueza dos grandes cacauicultores baianos.

Na literatura euclidiana não há exaltação aos ditos “vitoriosos desbravadores”, que colonizaram as matas, tornaram-se os donos do fruto do ouro, e ostentavam a riqueza como troféu. Em O Patrão, a narrativa segue um caminho inverso, pois em seu enredo o fazendeiro é o coadjuvante à sombra do trabalhador. Portanto, nesse prisma, com muito viço, entram em cena os subalternos trabalhadores rurais anônimos vivendo nos ranchos de taipas, cobertos de indaiás, no meio do mato. 

Na referida obra, em seu terceiro capítulo, após Tomás se ver sem dinheiro para comprar os mantimentos para a sua família e nem mesmo saldar suas dívidas antigas com o Eusébio da bodega, decide vender uma vaca doente do patrão para suprir as precárias condições de vida dele e de sua numerosa família. Portanto, as ideias de Felipe, trabalhador rural politizado, passavam a fazer ainda mais sentido para o vaqueiro:

Tomás foi relutando para aceitar os ditos de Felipe, até que um dia o Eusébio da bodega chamou-o na vista de todo mundo e alarmou:

– “Quero o meu, seu Tomás. De velhacaria, basta. Você é empregado de gente rica e pode me pagar. Eusébio tinha razão. Há mais de dois anos devia uma carne, dois quilos de açúcar, meio litro de querosene, três quartos de cachaça. O caçula ia fazer três anos e a nota havia sido para o resguardo de Lindaura. Ela deu à luz numa sexta-feira. Não tinha nada em casa”. 

O fazendeiro, Seu Casimiro, mesmo a distância, pois reside na capital baiana, desconfia que seu vaqueiro Tomás se apropriou de uma vaca que lhe pertencia. Após decidir investigar a situação, indo pessoalmente na casa de Tomás, verificando sua situação financeira, depara-se com comida farta no fogão, cela nova dependurada no quarto, rádio de pilha ligado, foto do casal de trabalhadores na parede em moldura prateada e dourada, e uma máquina de costura que o patrão julgava nova em folha. Aquela suposta vida boa, contrastando com o padrão de vida dos roceiros, deixava o patrão convicto que ele havia mesmo roubado o seu gado. Em uma conversa do fazendeiro com o senhor Francisco, comprador de gado, o fazendeiro revela sua indignação diante do possível roubo de uma cabeça de gado por seu vaqueiro:

“Seu Casimiro não pretendia conversar nada com ninguém sobre o caso do vaqueiro. Mas os aperitivos da cachaça Jacó serviram também para soltar a língua sobre o ocorrido.

–  Hoje em dia, não sei onde se vai parar. Não tem mais gente de confiança. Não vê esse Tomás, cria pode se dizer da casa, morando aqui há mais de vinte anos…

–  Que houve?

–  Que houve? Faz até vergonha dizer…

–  Não me diga que pegou roubando gado?

–  Isso mesmo. 

–  Muito?

–  Até agora desconfiei de uma vaca só.

–  Mata essa peste, Casimiro. Só matando.

– É o que dá vontade mesmo.

–  Antigamente…

–  Antigamente a gente pegava uma desgraça dessa amarrava uma corda no pescoço e jogava no poço do rio… o nem-sei-o-que-diga.

–  Hoje mudou tudo. Estão querendo é ser dono do que é da gente”. (

–  Isso mesmo. Vou deixar a boiada pronta, porque eu acho que de hoje até amanhã esse sujeito leva a galinha pulando.

–  Se você quer gente boa lá de casa mando um para fazer um festejo… Vem trabalhar de vaqueiro aqui, puxa uma discussão num fundo de manga e empacota ele para o inferno. É num fechar e abrir de olhos.

– “Não. Quero é dar o exemplo para todos daqui ficarem sabendo. Não vou passar por besta e ninguém me passa a perna.

–  Faz logo de uma vez, moço. Para gente ruim não tem contemplação. Cobra se mata bem matada”

O atentado do vaqueiro contra a vida do seu patrão ocorreu quando Seu Casimiro, montado em seu cavalo, fora fiscalizar o gado na pastagem. Ouviu-se um tiro único ecoando no ermo da mata confundido com uma ação de caçador, sem a presença de testemunhas. Ao se aproximar da vítima moribunda, o vaqueiro o encontra vivo, ensanguentado, agonizando com os olhos perfurados pela saraivada de munição. Trôpego, caminha cego perdido pela mata adentro, tateando em meios às arvores e espinhos, tentando voltar para a sede da fazenda. Ao encontrá-lo ainda com vida, o vaqueiro pensa em executá-lo sumariamente, mas desiste, deixando-o sucumbir lentamente, esvaindo-se em sangue no meio da mata.

“Seu Casimiro já não se mantinha em pé. Arrastava-se. Em cada mato topava um inimigo. Naquelas terras boas de capim, o penão nascia a cada passo. E, tocar-lhe o caule, o coco ou a folha seca caída na terra, não era melhor que pisar em brasa viva. Nas veredas abertas pelos carreiros, nasciam os calumbis afiados em pequenos podões. Uma vez atingida a pele, assemelhava-se a anzóis. Naquela noite até o ouriço cacheiro lhe aparecera. Gravatás pelo chão faziam cercas e, a terra, mais parecia um amontoado de pedras miúdas em ponta de faca e corte”. 

Na lógica capitalista, a vida sempre valeu menos que a propriedade. Inconscientemente, o vaqueiro sentenciou: “E pior não era a denúncia de que fora ele quem disparara. Pior que tudo, que a própria morte, seria a confirmação de que matara porque fora apanhado roubando o gado”. (NETO, Euclides. O patrão. p.84.) Segundo Elieser César, “Euclides Neto parece se comprazer com o longo estertor de Seu Casimiro. Poderia tê-lo matado com um tiro certeiro ou misericordioso. Mas o quer vivo e consciente, para que ele possa pensar no mal que fez aos pobres”. CESAR, Elieser. O Romance dos Excluídos. p.130) Ao voltar para a casa, o vaqueiro não parava de pensar em seu crime e na morte lenta que consumira o seu patrão. No entanto, concluía que seria preferível a morte penosa do patrão do que receber a execrável e humilhante acusação de ladrão de gado. Para ele, deveras, isso, sim, seria ultrajante.

Em uma espécie de autoflagelo emocional, o patrão questiona-se sobre suas atitudes injustas com seus trabalhadores, que o fizera pagar com a própria vida. Assim, ainda que tarde, conforme o monólogo a seguir, conclui:

“Foi ele, o Januário! Foi o caneco de leite novo que vi dando ao cachorro. Briguei. Xinguei ele. Depois ele disse que era leite novo, não prestava, por isso dava ao cachorro. Briguei. Desmoralizei ele!

“Foi Tomás, a vaca gabarrenta, não valia nada, estou morrendo, sofro uma nuvem na cabeça, não sei, foi o leite novo que deu ao cachorro, a vaca gabarrenta, senão eu ficava vivo; morri porque briguei por causa do leite do cachorro, por causa da vaca gabarrenta, do leite novo, leite podre do cachorro, Januário me matou, xinguei Januário, ofendi, jurei dar fim a Januário, o leite não prestava vender, vaca doente, milhares hectares gordos, a casa, Salvador, quatro carros na garagem, tudo perdi por causa do leite podre, misturado com sangue, deu cachorro, se não fosse leite novo, vaca gabarrenta ao açougue Ipiaú, para comprar máquina de pé, vestir menina peito duro furando vestido, pode. Pode alegria cachorro lambe-lambe leite grosso de sangue de novilha primeira cria. Ah! Se pudesse não brigar mais, voltar tudo. Foi Januário, Tomás.

Fui eu.

O risco que corre o pau, corre o machado”. 

Utilizando-se do recurso do fluxo de consciência, o narrador detalha os derradeiros momentos da vida do patrão. Em meio aos delírios confusos e fugazes, busca entender as causas e o autor da sua emboscada em seu monólogo final, emergindo no fazendeiro um sentimento de culpa por suas ações tirânicas e mesquinhas quando maltratava seus empregados, dentre eles, Tomás, por causa de uma vaca doente e de pouco valor.

Em O Patrão, mais que em quaisquer outras de suas obras, Euclides Neto demonstra seu perfil literário fortemente alicerçado no combate às injustiças sociais no campo e ao hostil tratamento dos grandes cacauicultores aos trabalhadores rurais. Assemelhando-se ao ímpeto dos escritores tratados em Represálias Selvagens, preconizamos que o autor de O Patrão, pelo perfil do conjunto de sua produção intelectual, também adota uma espécie de missão vingadora, agindo em defesa dos trabalhadores rurais despossuídos da terra e em represália às ações truculentas dos grandes produtores de cacau no Sul da Bahia.  

 

  Prof. Albione Souza- Mestre em História pela UNEB- Alagoinhas, autor dos livros “Os Despossuídos da Terra” e “Cido, O Pequeno Cidadão”, pulicados pela Via Litterarum Editora.

 


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