Mensagens privadas trocadas por procuradores da Operação Lava Jato em 2015 mostram que o então juiz federal Sergio Moro interferiu nas negociações das delações de dois executivos da construtora Camargo Corrêa, cruzando limites impostos pela legislação para manter juízes afastados de conversas com colaboradores. A informação é da Folha.
De acordo com a matéria, as mensagens, obtidas pelo The Intercept Brasil e examinadas pela Folha e pelo site, revelam que Moro avisou aos procuradores que só homologaria as delações se a pena proposta aos executivos incluísse pelo menos um ano de prisão em regime fechado.
A Lei das Organizações Criminosas, de 2013, que definiu regras para os acordos de colaboração premiada, diz que juízes devem se manter distantes das negociações e têm como obrigação apenas a verificação da legalidade dos acordos após sua assinatura.
O objetivo é garantir que os magistrados tenham a imparcialidade necessária para avaliar as informações fornecidas pelos colaboradores e os benefícios oferecidos em troca no fim do processo judicial, quando cabe aos juízes aplicar as penas negociadas se julgarem os resultados da cooperação efetivos.
Ainda conforme a Folha, as mensagens obtidas pelo Intercept mostram que Moro desprezou esses limites ao impor condições para aceitar as delações num estágio prematuro, em que seus advogados ainda estavam na mesa negociando com a Procuradoria.
Os diálogos revelam também que a interferência do juiz causou incômodo entre os integrantes da força-tarefa à frente do caso em Curitiba, que nessa época divergiam sobre a melhor maneira de usar as delações para dar impulso às investigações.
No dia 23 de fevereiro de 2015, o procurador Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa, escreveu a Carlos Fernando dos Santos Lima, que conduzia as negociações com a Camargo Corrêa, e sugeriu que aproveitasse uma reunião com Moro para consultá-lo sobre as penas a serem propostas aos delatores.
“A título de sugestão, seria bom sondar Moro quanto aos patamares estabelecidos”, disse Deltan.
As mensagens indicam que o procurador temia, além da reação do juiz, os danos que a Lava Jato sofreria se os benefícios concedidos aos executivos fossem vistos pela opinião pública como excessivos.
Na avaliação de Carlos Fernando, o mais importante naquele momento era que as informações obtidas com os delatores da Camargo Corrêa abririam frentes de investigação novas e promissoras, e isso justificava a proposta de redução das penas previstas para seus crimes.
“O procedimento de delação virou um caos”, disse Carlos Fernando ao responder à mensagem de Deltan. “O que vejo agora é um tipo de barganha onde se quer jogar para a platéia, dobrar demasiado o colaborador, submeter o advogado, sem realmente ir em frente”, acrescentou.
Para Carlos Fernando, era preciso pensar no longo prazo, além do acordo com a Camargo Corrêa. “Não sei fazer negociação como se fosse um turco”, disse. “Isso até é contrário à boa-fé que entendo um negociador deve ter. E é bom lembrar que bons resultados para os advogados são importantes para que sejam trazidos novos colaboradores.”
Embora a lei garanta ao Ministério Público autonomia para negociar, Deltan achava arriscado desprezar a opinião de Moro e queria que o colega desse mais atenção ao juiz. No dia 25, o chefe da força-tarefa voltou a manifestar sua preocupação.
“Vc quer fazer os acordos da Camargo mesmo com pena de que o Moro discorde?”, perguntou a Carlos Fernando. “Acho perigoso pro relacionamento fazer sem ir FALAR com ele, o que não significa que seguiremos.”
“Podemos até fazer fora do que ele colocou (quer que todos tenham pena de prisão de um ano), mas tem que falar com ele sob pena de ele dizer que ignoramos o que ele disse”, acrescentou.
As mensagens são reproduzidas tal qual aparecem nos arquivos obtidos pelo Intercept, mantendo eventuais erros de digitação e normas da língua portuguesa.
A opinião de Moro foi respeitada. Com a assinatura dos acordos, dois dias depois, ficou acertado que os dois executivos da Camargo Corrêa, Dalton Avancini e Eduardo Leite, que estavam presos em Curitiba em caráter preventivo havia quatro meses, sairiam da cadeia com tornozeleiras e ficariam mais um ano trancados em casa.
Os delatores deram informações sobre o cartel organizado pelas empreiteiras para fraudar licitações da Petrobras, admitiram o pagamento de propina a políticos e dirigentes da estatal e revelaram desvios na construção da usina nuclear Angra 3 e em outras obras do setor elétrico.
Foi a primeira vez que executivos de uma das maiores empreiteiras do país admitiram a prática de corrupção, abrindo caminho para que outros fizessem o mesmo nos meses seguintes. A Odebrecht e a Andrade Gutierrez decidiram colaborar com a Lava Jato em 2016.
A Camargo Corrêa também foi a primeira das grandes empreiteiras a assinar um acordo de leniência com os procuradores, em agosto de 2015. A empresa se comprometeu a pagar multa de R$ 700 milhões para se livrar de ações judiciais e poder voltar a fazer negócios com o setor público.
Na audiência em que homologou os termos da delação de Avancini, em fevereiro, Moro afirmou que seus depoimentos acrescentaram pouco ao que os investigadores já sabiam e foram omissos sobre casos que eram objeto de ações judiciais em outros estados.
“É possível que o acusado em questão desconheça esses fatos”, afirmou o juiz, de acordo com o termo da audiência. “Entretanto, também é possível que não tenha sido totalmente verdadeiro.” Após ouvir apelos de Carlos Fernando e da defesa de Avancini, Moro decidiu homologar a delação.
Para dois advogados que acompanharam as negociações com a Camargo Corrêa e seus executivos nessa época, não há dúvida de que Moro ignorou os limites da lei ao impor pena mínima como condição para homologar os acordos dos delatores e, depois, ao questionar o conteúdo dos depoimentos de Avancini.
Os advogados consultados pela Folha disseram que dificilmente os executivos da Camargo Corrêa teriam aceitado cooperar com a Lava Jato sem ter alguma garantia de que os acordos receberiam o aval do juiz, segurança que só foi possível obter com as conversas que os procuradores tiveram com Moro durante as negociações.
Em julho de 2015, Moro condenou Avancini e Leite pelos crimes de corrupção ativa e lavagem de dinheiro, num processo que tratava da corrupção na Petrobras. Na sentença, reconheceu a relevância das informações fornecidas pelos delatores e aplicou as penas acertadas pelo Ministério Público com eles.
As mensagens analisadas pela Folha e pelo Intercept indicam que, com o tempo, a interferência do juiz passou a ser vista com naturalidade pelos procuradores. Isso ficou claro em agosto de 2015, quando o caso de Avancini foi lembrado num grupo do Telegram que reunia integrantes da força-tarefa de Curitiba e da Procuradoria-Geral da República.
“Moro tem reclamado bastante, mas ao final sempre concorda com a nossa proposta”, escreveu o procurador Paulo Roberto Galvão, de Curitiba, ao responder a um colega que perguntou sobre casos em que o juiz teria rejeitado acordos de delação por considerar fracas as provas apresentadas.
Galvão acrescentou que Moro tinha implicado recentemente com outro colaborador, o ex-gerente da Petrobras Eduardo Costa Vaz Musa, mas outro membro da força-tarefa, Orlando Martello, disse que o problema estava sendo resolvido. “Estão reforçando os depoimentos para superar a questão, mas ainda não foi homologado”, escreveu.
Seis meses depois, quando um terceiro executivo da Camargo Corrêa, João Ricardo Auler, fechou acordo de delação premiada e era preciso decidir em que instância ele seria submetido a homologação, Deltan consultou Moro.
“Vejo vantagens pragmáticas de homologar por aqui, mas não quisemos avançar sem sua concordância”, disse o procurador.
Moro respondeu que era indiferente à questão, mas queria saber os termos do acordo com o empreiteiro mesmo assim. “Para mim tanto faz aonde. Mas quai foram as condicoes e ganhos?”, perguntou ao chefe da força-tarefa no Telegram. “Vou checar e eu ou alguém informa”, respondeu Deltan.
Dalton Avancini e Eduardo Leite foram condenados por Moro a 16 anos e 4 meses de prisão. Graças aos benefícios obtidos com a delação, cumpriram um ano de prisão domiciliar em regime fechado e mais dois em regime semiaberto, com recolhimento obrigatório à noite e nos finais de semana. Moro homologou o acordo de Eduardo Musa em setembro de 2015.
Outro lado
O ministro da Justiça, Sergio Moro, afirmou que não participou das negociações de nenhum acordo de colaboração premiada na época em que foi o juiz responsável pelos processos da Operação Lava Jato no Paraná, de 2014 a 2018.
“Enquanto juiz, não houve participação na negociação de qualquer acordo de colaboração”, diz nota enviada por sua assessoria para comentar as mensagens obtidas pelo The Intercept Brasil que apontam sua interferência nas negociações com executivos da Camargo Corrêa, em 2015.
“Cabe ao juiz, pela lei, homologar ou não acordos de colaboração”, acrescenta a nota. “Pela lei, o juiz pode recusar homologação a acordos que não se justifiquem, sendo possível considerar a desproporcionalidade entre colaboração e benefícios.”
O ministro mencionou, “como exemplo histórico”, o caso do gangster americano Al Capone (1899-1947), que teve um acordo rejeitado por um juiz de Chicago em 1931.
No Brasil, a lei 12.850, de 2013, define como papel do juiz após a assinatura dos acordos de colaboração “verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade”. Não há menção na lei à análise sugerida por Moro como condição para homologação das delações.
A lei prevê que as informações fornecidas pelos colaboradores e os benefícios oferecidos em troca de sua cooperação sejam avaliados pelo juiz na sentença, ao final do processo judicial, depois de terem sido submetidos a questionamentos da defesa dos acusados pelos delatores.
Moro afirmou que não reconhece a autenticidade do material obtido pelo Intercept, como vem fazendo desde a publicação das primeiras reportagens sobre mensagens trocadas pelos procuradores da Lava Jato, no início de junho. Ele não apontou indícios de adulteração nos diálogos, porém.
Ao interpretar as mensagens analisadas pela Folha e pelo Intercept, o ministro afirmou que “os procuradores referem-se a decisões judiciais expressas, inclusive em termos de audiência, que exigiram esclarecimentos, ajustes ou maior rigor penal para homologação de acordos”.
Na verdade, os diálogos em que a reportagem se baseia mostram os procuradores discutindo condições apresentadas por Moro durante as negociações dos acordos de colaboração premiada, antes das audiências realizadas para sua homologação e antes de qualquer decisão judicial.
“Ressalta-se que não há ilegalidade ou imoralidade nas decisões judiciais, que estão nos autos processuais, repudiando-se nova tentativa de, mediante sensacionalismo e violação criminosa da privacidade, atacar a correção dos esforços anticorrupção da Operação Lava Jato”, diz a nota do ministro.
Informada sobre o conteúdo das mensagens examinadas pela Folha e pelo Intercept, a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba afirmou que não se manifestaria sobre o assunto sem ver os diálogos, mas reiterou que não reconhece a autenticidade do material.
“A força-tarefa da Lava Jato em Curitiba não reconhece as mensagens que têm sido atribuídas a seus integrantes”, disse, por meio de nota. “O material é oriundo de crime cibernético e não pode ter seu contexto e veracidade confirmados.”
As defesas dos ex-diretores da Camargo Corrêa que fecharam acordos de colaboração premiada com a Lava Jato, Dalton Avancini, Eduardo Leite e João Ricardo Auler, e do ex-gerente da Petrobras Eduardo Costa Vaz Musa, também não quiseram se manifestar sobre os diálogos.
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