A corretora de imóveis Raffaella Menni, de 59 anos, registrou no último sábado (21), na 26ª DT/Abrantes, uma ocorrência contra dois funcionários do Condomínio Planeta Água, localizado em Barra do Jacuípe, e um segurança de uma empresa privada que presta serviço no local. O motivo: sua filha, Dulcineia Michelle Carzaniga, 28, foi impedida de entrar no local por conta da cor da pele no dia 30 de julho. Segundo a corretora, Dulcineia estava lá para visitá-la e chegou a fazer uma ligação de vídeo com ela, que autorizou a entrada e confirmou o parentesco, mas o porteiro não acreditou porque ela era branca e a filha, negra.
Ao lembrar do caso, Dulcineia conta que as pessoas da portaria agiram com desconfiança desde o início e que se mostraram irredutíveis. “Eu sempre vou de manhã pra casa da minha mãe. Naquele dia, eu falei que ia lá e eles pegaram a foto no Whatsapp dela e ficaram questionando se eu estava falando a verdade. E não deixaram entrar de jeito nenhum, nem com a palavra dela”, lembra ela, que afirma não ter entendido a atitude pois sempre passa por lá e sabe que é de conhecimento geral o seu parentesco com Raffaella, que se revoltou com a situação.
Portaria teria impedido vítima de entrar no condomínio por ela ser negra
“Sou italiana, mas moro no Brasil há mais de 10 anos. Minha filha é adotada legalmente com dupla nacionalidade italiana e brasileira. Na hora, eu falei com ela para fazer uma chamada de vídeo. Quando ela fez isso, o cara virou as costas. Eu pedi para ele liberar porque era minha filha. Aí ele não virou e apenas conversou com ela, dizendo que não acreditava”, conta Raffaella, explicando que a Dulcineia já tinha sido barrada antes com diferentes justificativas, mas nunca tinha sido alvo de racismo, o que foi a gota d’água.
Para o advogado Kleber Freitas, que é especialista em direito público, qualificar o caso como racismo não é exagero e está correto. Ele diz também que a ação não se trata de injúria racial, embora alerte que a linha entre os dois crimes seja tênue. “Tendo em vista os acontecimentos narrados, visto que o ato foi praticado tão somente em virtude da cor da jovem, entendo como racismo. Se o caso fosse algo a que todo o condomínio tomasse conhecimento, poderíamos facilmente enquadrar em injúria racial, visto que teria submetido a jovem a situação vexatória em público”, explica.
Condomínio nega
Procurada, a administração negou as acusações de Raffaella e Dulcineia, afirmando que a filha até chegou a ser barrada no local, mas não por ser negra. “Uma moça chegou no dia 30 de julho tentando entrar no condomínio, que tem segurança e pediu a identificação como faz com qualquer condômino daqui. A moça disse o nome, mas não tinha um documento ou se negou a entregar o documento para que fizessem as anotações e não sabia a quadra ou lote que ia”, diz Laerte Rocha, síndico do condomínio, afirmando que essa situação a fez ser barrada.
Dulcineia nega que esse tenha sido o motivo e lembra que explicou para onde iria aos responsáveis. “Eu não estava com o RG porque estava indo para a casa da minha mãe e todo mundo lá sabe que sou filha de Raffaella. Porém, eu sabia pra onde estava indo e falei para eles. Mas eles não acreditaram e chegaram a dizer que era mais fácil eu ser empregada”, relata.Raffaella confirma a versão da filha e lembra o quanto ficou irada no momento. “Eu já tinha mandado documentos para deixar livre a entrada da minha filha e do meu genro. Me deu uma raiva gigante isso que fizeram com ela. Ela é minha filha e não é porque ela é negra que tem que ser empregada”, declara a corretora.
Na ocasião, Dulcineia acabou retornando para casa por conta do ocorrido e sua mãe ficou sem saber o que fazer. Foi o aposentado e vizinho de Raffaella, Ricardo Leite que a orientou a procurar a delegacia. A Polícia Civil confirmou o registro da ocorrência e disse que, apesar de não informar a data exata, todos os envolvidos no fato serão ouvidos na unidade. “Na hora que aconteceu o fato, ela me ligou desesperada. De imediato, disse a ela que era um caso de polícia, que ela precisava ir na delegacia para que fossem tomadas as providências”, conta Leite.
Loteamento ou condomínio?
Tanto Ricardo como Raffaella alegam que o ato de racismo é parte de uma perseguição contra a italiana por ela se negar a reconhecer o local como condomínio e pagar taxas para a administração. De acordo com eles, a área é um loteamento público e foi fechada de maneira ilícita. “Não reconheço nada disso. Para mim, não existe síndico, administração e nem condomínio. Isso é um loteamento público e eles fecharam, fizeram portaria e depois começaram a fazer cobranças. Como não reconheço, eles me prejudicam”, afirma a corretora.
Ricardo, que chegou a ser síndico do local, concorda com a vizinha, diz que comprou sua casa lá achando que se tratava de um condomínio e só descobriu que não era quando foi fazer uma obra no local e teve a atenção chamada por um promotor de justiça. “Depois de constatar que é loteamento, fui à luta contra essa cobranças e fui ameaçado de morte por um dos moradores. Raffaella também não paga o que eles pedem e não reconhece o condomínio. Então, eles boicotam ela e chegaram neste ponto de ter uma atitude grotesca como essa”, diz o aposentado, que entregou um documento da Promotoria de Justiça de Camaçari que afirma que o local é um loteamento público.
Sobre o impasse quanto a natureza da área, a administração preferiu não responder às afirmações de Raffaella e Ricardo e limitou-se a dizer que as ações da moradora têm outra motivação. “Em 21 de agosto, foi barrado um caminhão com material de construção dessa pessoa, pois a mesma não tem legalidade em sua obra, não tem alvará, não tem projeto, é uma construção clandestina, esse é o motivo dessa acusação. A questão toda é que ela quer que se libere a entrada de um material para construção”, rebate Laerte.
A Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente (Sedur) de Camaçari foi procurada para responder sobre a natureza do local e afirmou que se trata de uma área pública. “Não consta nos registros da Sedur a existência do Condomínio Planeta Água, sendo o local em questão reconhecido junto à pasta, como Loteamento Vale da Landirana, aprovado no município em 16 de julho de 1980. Dessa forma, todas as vias e áreas verdes são patrimônio público”, escreve.
A Exseg Segurança Privada, empresa que mantém um funcionário na portaria do local, também foi questionada sobre o ocorrido, afirmou desconhecer o caso e que o ato de barrar pode ter vindo de alguém que não é do seu quadro de funcionários. “Não chegou ao nosso conhecimento. Mesmo porque essa atitude [de barrar], se foi tomada, pode ter sido feita pelo pessoal da associação, que também fica lá”, explica Gilson Teles, coordenador comercial da empresa, que declara que não existe ordem para barrar ninguém por lá justamente pela natureza da área. “Os funcionários que trabalham lá estão orientados a não barrar seja quem for. Eles só identificam as pessoas para saber quem adentrou ao local ou não. Não se barra ninguém porque é loteamento, é público”, completa.
Correio
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