“Macaca”. Esta palavra foi o que uma professora negra encontrou, no último dia 24 de outubro, no lugar em que deveria estar escrito o seu nome na lista de presença de alunos de uma escola municipal da Zona Sul de São Paulo.
Ela também viu em 1º de novembro fotos tiradas por alunos de uma carteira estudantil com desenhos de uma suástica e das letras “SS”, abreviação de Schutzstaffel, o “esquadrão de proteção” (numa tradução para o português) de Adolf Hitler e do Partido Nazista na Alemanha dos anos de 1930 (saiba mais abaixo).
Em 26 de outubro, a educadora Ana Paula Pereira Gomes, a Ana Koteban, de 41 anos, procurou a Polícia Civil com a cópia da lista com a palavra “macaca” no lugar de seu nome para pedir que fosse investigado quem cometeu a ofensa racista contra ela. A professora também pretende levar fotos das inscrições de cunho neonazista à Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi) para que a nova denúncia seja apurada.
Os dois casos ocorreram dentro da Escola Municipal de Ensino Fundamental e Médio Professor Linneu Prestes, em Santo Amaro, onde ela dá aulas de sociologia. Lá estudam adolescentes de 15, 16 e 17 anos, geralmente.
O g1 entrou em contato com a Secretaria Municipal da Educação (SME) de São Paulo, que informou, por meio de nota, que “repudia qualquer ato de discriminação e racismo” (leia abaixo a íntegra do comunicado).
O caso no qual ela foi xingada de “macaca” foi registrado na Decradi como injúria racial, que é ofender alguém com alguma palavra preconceituosa, como em razão da cor da pele dessa pessoa. A pena para quem for condenado por esse crime é de 1 ano a 3 anos de prisão. O crime de racismo se dá quando ocorre contra duas ou mais pessoas.
Até a última atualização desta reportagem, o responsável pelo ataque racista à professora não havia sido identificado pela Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância.
“Nesse espaço onde está escrito ‘macaca’ é onde eu escreveria meu nome”, disse a educadora nesta terça-feira (8) ao g1. “A pessoa escreveu na lista de presença exatamente na coluna onde eu escreveria meu nome porque ela pretendia que eu visse. Demonstra uma ousadia e confiança na impunidade.”
Sem suspeitos pelo crime
Ana Koteban, que adota esse segundo nome de maneira artística em homenagem ao grupo de balé africano onde dança, disse ao g1 que não tem suspeitas de quem possa ter sido racista com ela. A professora está na escola desde 2017.
Nesse período ela comenta que nunca sofreu racismo na escola. No entanto, se recorda de ter recebido reclamações de pais de alunos e às vezes ter notado até alguns estudantes demonstrarem descontentamento com os assuntos que aborda em classes.
“Sou professora, mulher negra, que dá aula de sociologia e trabalha temáticas não só ligadas ao racismo e à diversidade como um todo, mas a direitos humanos também”, afirmou Ana. “A relação com alunos é muito respeitosa de maneira geral, mas existe uma resistência sobretudo a essa temática. É uma tendência que se reflete não só em estudantes como de familiares. De pais que ligam para reclamar que professora está dando tal assunto.”
A lista de presença na qual ela foi ofendida com o termo “macaca” conta com os números de chamada dos alunos e um espaço no alto onde cada professor escreve o seu nome no dia respectivo em que dará a aula.
O documento costuma sair da sala dos professores e ir direto para uma classe específica, ficando lá até que todos os professores anotem seus nomes nos respectivos espaços junto com as presenças ou faltas dos estudantes. Depois, a ficha retorna ao mesmo local de onde veio.
Quem viu a ofensa racista primeiro foram outros dois educadores da escola. Um deles levou a folha para a diretoria. Ana contou que só soube do caso depois, pelos colegas. E que se sentiu desamparada quando procurou a direção, que, segundo ela, foi omissa no início.
“A direção da escola respondeu que não havia como identificar quem fez”, disse Ana, pois a alegação da direção seria de que não há câmeras nas salas de aula.
Depois disso, ela resolveu postar a denúncia no seu Instagram, com foto da fachada da escola e vídeos comentando o que houve. “Esperei do dia 24 ao dia 27 para a escola fazer alguma ação coletiva e a escola sequer registrou que isso aconteceu, nem documentou.”
A partir disso, Ana parou de dar aulas como forma de protesto pelo ataque racista que sofreu e decidiu usar o tempo de seu trabalho para conscientizar outros educadores e alunos sobre a gravidade do que ocorreu.
“Desde que ocorreu isso eu tenho cobrado dos estudantes que se posicionem. Cobro da direção que se posicione. É inaceitável e criminoso tratar violência como brincadeira. É preciso dar a isso o peso que isso tem. Reconhecer a gravidade e desnaturalizar a violência”, falou a professora, que voltou a lecionar nesta última terça, quando, segundo ela, a direção passou a discutir o racismo na escola.
“Voltei a dar aula ontem, com esta ação e com o compromisso formal do Conselho de Escola de reconhecer por escrito que se trata de racismo institucional e não de um episódio pontual. E também o compromisso da gestão e da escola como um todo, por meio do conselho, de tornar o enfrentamento ao racismo e à cultura de violência na escola o ‘carro chefe’ do projeto pedagógico, nas aspas do diretor”, comentou Ana.
Símbolos nazistas em carteiras
Na última terça, integrantes do grêmio estudantil resolveram fazer um ato dentro da escola para orientar alunos e cobrar da direção que o racismo fosse debatido para deixar de existir dentro do meio acadêmico. Foi quando eles encontraram uma carteira com desenhos da suástica nazista e das letras SS.
“Eles encontraram essa carteira em sala de aula com esses desenhos nazistas. Levaram a carteira à direção e me informaram disso”, afirmou Ana. “Essa carteira estava numa sala de aula em que eu dou aula porque dou aula em todas as salas.”
Os estudantes tiraram fotos da carteira e depois a levaram à direção para que tomasse providências. A professora viu as fotografias e contou ter pedido um esclarecimento à escola.
“Precisávamos de plano de enfrentamento [contra o racismo e o nazismo] que têm de ser institucional. Isso pode sugerir que temos estudantes vinculados a grupos neonazistas. Se não tivermos estudantes que são membros de grupos de neonazistas, talvez que estejam sob influência dessa ideologia, seja por internet ou família.”
De acordo com Ana, a situação na escola chegou a um ponto em que muitas pessoas podem se tornar alvos de quem é intolerante.
“Pais de estudantes negros, LGBTs e pessoas com deficiência são vítimas desse ódio, eles têm direito de ser informados que isso pode representar risco para a segurança dos filhos deles”, alertou a educadora. “Minha segurança está em risco também.”
Segundo Ana, somente depois de ter ido às redes sociais e pedido providências é que a diretoria da escola passou a atender algumas das suas propostas para tentar combater a intolerância.
“A escola aceitou se propor a mudar a postura e hoje [nesta terça] fez a primeira ação coletiva de combate ao racismo com todos os professores ao mesmo tempo”, afirmou a professora. “É insuficiente, lento e tardio. Mas tenho que reconhecer que foi feito.”
‘Custo emocional é imenso’
A educadora comentou que ainda se sente abalada emocionalmente com o que aconteceu.
“O custo emocional é imenso, e o dano causado sobre nosso emocional é profundo e invisibilizado. Muitos dizem: ‘Para quê tanto barulho?’ Desprezam nossa dor. Vivemos num país que é educado para desprezar nossa humanidade. E isso é pesado. É inaceitável. O ambiente escolar é insalubre para pessoas negras. Prejudica a nossa saúde mental e gera problemas não só de desempenho escolar e ascensão na carreira, mas gera problema de saúde física. Por isso dizemos: o racismo mata”, falou Ana.
A técnica de enfermagem Silvia Letícia, de 44 anos, é mãe de um aluno de 18 anos que estuda na escola. “Eu sou mãe de um menino aluno, menino trans, que também já sofreu preconceito nessa escola. E a Ana intermediou o assunto com todo carinho e respeito. Meu filho se sentiu amparado e eu também. Então eu acho injusto o que estão fazendo com ela”, disse.
Silvia suspeita que os ataques racistas contra a professora possam ter sido feitos por alguns estudantes. “Tem de ser feito algo emergencial para que esses alunos entendam que estão errados, que eles não estão indo à escola para ficar apontando o dedo e humilhando o próximo.”
A Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio acompanha o caso de Ana. “A violência estrutural do racismo atinge todos os setores da sociedade. Precisamos de uma ação conjunta e efetiva de toda comunidade escolar para que isso não se repita”, disse Marcio Berhing Silva, articulador da rede na Zona Sul.
O que diz a pasta da Educação
Procurada para comentar as denúncias de racismo e neonazismo cometidas dentro da Escola Municipal de Ensino Fundamental e Médio Professor Linneu Prestes, a Secretaria Municipal da Educação encaminhou a seguinte nota ao g1:
“A Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal da Educação (SME), repudia qualquer ato de discriminação e racismo. Tão logo ficou sabendo do episódio, a Diretoria Regional de Ensino instaurou apuração interna, já em andamento, e está à disposição para colaborar com qualquer investigação oficial em curso.
O Núcleo de Apoio e Acompanhamento para a Aprendizagem (NAAPA), que conta com psicopedagogos e psicólogos, acompanha o caso e prestará todo o apoio necessário durante o processo.
A EMEFM Professor Linneu Prestes promove ações constantes com a temática antirracista, como rodas de conversa, apresentação de vídeos para discussão e elaboração de textos e, ainda neste mês, há na programação um seminário, onde alunos e professores irão participar.
A SME possui o Núcleo de Educação para as Relações Étnico-Raciais (NEER), com base nos princípios de Equidade, Educação Inclusiva e Educação Integral, com o objetivo central de fomentar e promover práticas antirracistas, inclusivas e acolhedoras a todas e todos. Formar profissionais atentos às desigualdades e comprometidos para sua superação perpassa os fazeres deste núcleo.
Neste ano, a Prefeitura de São Paulo adquiriu 741.333 livros literários sobre a temática étnico-racial para compor os acervos das escolas municipais e serem distribuídos entre os estudantes por meio do programa Minha Biblioteca. A compra faz parte do programa “São Paulo Farol Antirracista”, realizado em parceria com a Secretaria Municipal de Relações Internacionais com intuito de promover ações de combate ao racismo.”
G1
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