Justiça baiana tem primeira condenação por preconceito religioso

Seis anos depois da morte da vítima, veio a sentença. Na última segunda-feira, Edineide Santos de Jesus foi condenada por racismo, na modalidade preconceito religioso, cometido em 2015 contra a ialorixá Mildredes Dias Ferreira, conhecida como Mãe Dede. A ialorixá sofreu um infarto na ocasião e faleceu. Essa foi a primeira decisão colegiada de condenação criminal por intolerância religiosa na Bahia e reflete a dificuldade de punir crimes ligados ao preconceito.

Edineide é membro da Igreja Casa de Oração Ministério de Cristo, que fica na Rua da Mangueira, em Camaçari, próximo ao Terreiro Oyá Denã, dirigido pela ialorixá. Em 2014, os ataques começaram. Especialmente durante o mês de maio de 2015, a casa de candomblé foi alvo constante de ataques verbais. A cada ritual, aos gritos de “sai, Satanás!”, “queima, Satanás!”, dentre outros, Edineide e outros membros costumavam insultar os integrantes do candomblé, com o auxílio de microfones, durante as atividades da igreja evangélica.


Segundo a família de Mãe Dede, sua morte por infarto, em 2015, aos 90 anos, aconteceu após a ialorixá ter a saúde agravada pelo racismo religioso. Uma testemunha afirmou que, no dia da morte da Mãe de Santo, ela estava aflita por conta da vigília que ocorria na igreja evangélica, com abuso de som e sendo possível escutar as falas “sai, satanás”, direcionadas ao terreiro.

No mesmo ano, o Ministério Público ofereceu uma denúncia contra os pastores evangélicos da Igreja Casa de Oração Ministério de Cristo, Edneide Santos de Jesus e Lindival Viana de Santana, por praticarem, induzirem e incitarem a discriminação e o preconceito de religião contra integrantes do Terreiro de Oyá Denã.

Em setembro de 2019, a juíza Bianca Gomes da Silva, da 2ª Vara Criminal de Camaçari, condenou Edineide pelo conjunto de provas. A defesa da religiosa recorreu da decisão. O recurso foi relatado pelo desembargador Nilson Castelo Branco, da 2ª Turma da 1ª Câmara Criminal do TJ-BA. No relatório, ao manter a sentença questionada, o desembargador afirmou que “a liberdade de expressão, mesmo a religiosa, da denunciada, ainda que protegida constitucionalmente, não pode ser tida como absoluta de modo permitir o aviltamento a culto distinto, através de expressões que violam a norma penal”.

Condenação difícil

De acordo com o desembargador Lidivaldo Reaiche Britto, a condenação de Edineide agora foi confirmada em 1 ano de prisão, mas, por ser ré primária, dentre outros fatores, a pena foi convertida à prestação de serviços comunitários. O crime, neste caso, foi o racismo na modalidade preconceito religioso. Ele está previsto no artigo 20 da Lei 7.716/1989. Para esse tipo de crime, a pena é de 1 a 3 anos de prisão. A condenação de Lindival não pode ser efetivada por falta de provas contra ele.

“O serviço comunitário deve acontecer durante o mesmo período da condenação que, nesse caso, é de um ano. Ele normalmente acontece em hospitais, escolas e órgãos públicos, voltados para a área administrativa, pedagógica ou de fiscalização, por exemplo. Quem fiscaliza isso é a Vara de Execução Penal, que também vai determinar as especificações do serviço”, explica o desembargador.

Sobre o motivo da morte, o desembargador acrescentou. “Houve o abalo psicólogo. Não pode haver a criação do nexo causal entre a morte e os ataques, mesmo sabendo que existe uma relação. Já não é o primeiro caso, inclusive. Tivemos a morte de Mãe Gilda após o sofrimento por intolerância religiosa”, explicou.

Para Leonel Monteiro, presidente da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro-Ameríndia (AFA), um dos obstáculos para chegar à condenação é o enquadramento dos crimes. “A maioria dos operadores do direito, em todos os níveis, têm dificuldade de entender que os fatos que acontecem são motivados por intolerância religiosa e racismo religioso e não por outra coisa. Por exemplo, se um vizinho de um terreiro coloca um som alto toda vez que tem qualquer coisa no terreiro, ele não está perturbando o sossego alheio, ele está sendo intolerante e tentando impedir o culto”, coloca Monteiro.

Para que se chegue a uma denúncia é preciso vencer o primeiro obstáculo: as delegacias. Na Bahia, ainda não há uma delegacia especializada em crimes relacionados ao racismo e à intolerância religiosa. “A gente vem lutando por uma delegacia especializada há 10 anos. Muitas vezes, quando se chega numa delegacia comum para denunciar esse tipo de crime, o caso é tido como briga de vizinho, insulto, enfim, qualquer coisa, menos intolerância”, destaca o presidente da AFA.

De acordo com a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial da Bahia (Sepromi), entre 2017 e 2018 houve um aumento de 124% nos crimes de intolerância religiosa cometidos no Estado. Já na série histórica dos últimos seis anos, esse crescimento chegou a 2.250%. Segundo dados do Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA), foram registradas, através do aplicativo Mapa do Racismo, 107 denúncias em 2019 por intolerância religiosa e racismo. Já no ano passado, até o mês de novembro, foram 219 denúncias.

Racismo estrutural: Justiça caminha a passos lentos

De acordo com o Promotor de Justiça Edvaldo Gomes Vivas, coordenador do Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos (Caodh), o fenômeno da intolerância religiosa, no Brasil, está diretamente ligado à herança da escravidão. “Não sendo mera coincidência que são os adeptos de religiões de matriz africana aqueles que mais sentem na pele esse tipo de prática odiosa e criminosa”, coloca.

Ele concorda que falta amparo às vítimas e que uma resposta efetiva caminha a passos lentos. “Os processos, embora sejam imprescritíveis, podem levar anos na justiça até que se consiga realmente uma condenação efetiva. E o próprio fenômeno do racismo estrutural pode impedir que haja a devida sensibilização dos órgãos de Justiça por parte de nós delegados, promotores e juízes, na forma como enxergamos as múltiplas formas pelas quais o racismo se traduz no Brasil”, opina.

Mas, para o promotor, a condenação confirmada na segunda-feira, no caso de racismo religiosos contra Mãe Dede, é motivo de comemoração. “É a utilização do Direito Penal para garantir os direitos humanos. Estamos demonstrando às pessoas que existem limites. A gente exorta a população a ter fé nos órgãos de sistema de direito e apostar neles para que a gente possa realmente debelar essa prática criminosa e odiosa”, conclui.

Há 22 anos sem desfecho, caso de Mãe Gilda instituiu data nacional

O dia 21 de janeiro é o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. A data foi escolhida em homenagem à Ialorixá Mãe Gilda, falecida como vítima da intolerância religiosa em 1999, um caso semelhante ao de Mãe Dede, em 2015. Mãe Gilda teve seu terreiro, o Ilê Axé Abassá de Ogum, invadido e depredado por representantes de outra religião.

Seus problemas de saúde se agravaram em decorrência dos ataques de ódio e agressões verbais e físicas que sofreu de seguidores da Assembleia de Deus dentro de seu próprio terreiro, em Itapuã.

Para a ialorixá Jaciara Ribeiro, de 53 anos, filha biológica de Mãe Gilda, as pessoas ainda não conseguem associar o ato de intolerância ao crime e violência. São insultos, cuspes, xingamentos e espancamentos. Ela ressalta ainda a dificuldade de seguir com a luta.

“E a gente ainda fica sujeito a parecer que está de vitimismo, que quer ser a garota propaganda da dor. Isso adoece o nosso povo. Mas a gente não pode se calar”, diz Jaciara.

Mas, infelizmente, a invasão e depredação do terreiro de Mãe Gilda foi mais um caso sem desfecho. “A gente denunciou na delegacia e ficou por isso mesmo. Ainda estamos esperando resultado. Foi levado para o Ministério Público, mas não tivemos retorno. Fora isso, o busto em homenagem à Mãe Gilda foi depredado já mais de uma vez e, inclusive, tivemos dificuldade na delegacia porque a delegacia queria registrar como vandalismo e não como intolerância religiosa”, diz a ialorixá Jaciara.

Fique por dentro

Injúria – O crime está previsto no artigo 140 do Código Penal. A pena é de detenção, de três meses a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência. A injúria consiste na utilização de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião, origem ou à condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.
Injúria racial – Quando as ofensas de conteúdo discriminatório são empregadas a pessoa ou pessoas determinadas por motivação de cor.
Racismo – Constante do artigo 20 da Lei nº 7.716/89, somente será aplicado quando as ofensas não tenham uma pessoa ou pessoas determinadas, e sim venham a menosprezar determinada raça, cor, etnia, religião ou origem, agredindo um número indeterminado de pessoas. Penas superiores às do crime de injúria racial.
Como denunciar?

O aplicativo Mapa do Racismo e da Intolerância Religiosa recebe registro de ato criminoso. Além disso, a vítima pode procurar a delegacia mais próxima e registrar a queixa.

Apoio Vinculado à Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Estado (Sepromi), o Centro de Referência ao Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela oferece apoio psicológico, social e jurídico a vítimas de racismo e intolerância religiosa na Bahia.

‘Os ataques afetaram ela’, diz neta de Mãe Dede

Laís Catarine Santana, 23 anos, neta de Mãe Dede, ialorixá que faleceu em 2015 após os ataques de intolerância religiosa contra seu terreiro, conta como aconteceu o caso.

Como os ataques começaram e como ocorriam?
O terreiro tem 45 anos e a Igreja surgiu bem depois, mais recentemente. Quando ela se instalou aqui, logo em seguida os ataques começaram. Antes disso, nunca tínhamos tido nenhum problema do tipo. Aí eram gritos, pessoas jogando sal na porta, insultando, dançando aqui na frente. Todo mundo ia lá pedir para eles pararem, a gente dizia que ela estava debilitada, doente, mas, ainda assim, os insultos continuavam. Depois do falecimento, acho que eles se impactaram e também já houve a queixa e eles receberam as intimações, então, com isso, os ataques acabaram. Uma pena que isso tenha custado a vida de minha avó.

De que maneira isso tudo afetou a saúde de Mãe Dede e contribuiu com a morte dela?
Os ataques afetaram ela psicologicamente, ela ficou debilitada. Ela já tinha certa idade e, ouvindo aqueles insultos na sua porta toda hora, vendo o pessoal jogando sal e nos tratando daquele jeito, uma hora ou outra aquilo iria machucar ainda mais.

Como sua avó reagia? O que você pode contar sobre ela?
Minha avó era uma pessoa que só espalhava amor, acolhia a todos que chegavam, não merecia isso. Ela era ialorixá de Iansã e a história dela se mistura à história do terreiro. É uma história linda. Não tinha quem passasse pelo terreiro e não ficasse impactado, marcado de alguma forma pela risada dela, o seu abraço, o acolhimento. A pessoa poderia até não gostar do axé, mas, com certeza, ia gostar de minha avó.

Como foi o processo da denúncia até a condenação?
A Mãe Meire ficou à frente disso, junto com a abiã da casa, Paula. Elas levaram provas, gravações, já que aqui na frente do terreiro sempre teve câmeras de segurança, então isso ajudou. Mas foi um processo de sofrimento, de anos de impunidade. Mas, apesar da punição tardia, é muito simbólica e importante. Ela representa esperança e espero que sirva de exemplo e represente todo o povo de axé. É preciso aprender a respeitar a fé do outro. Estamos falando de um país laico, onde temos direito perante à lei de expressar a nossa fé. Só queremos ter esse direito garantido.

Correio/ Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro


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