Jacu e boca preta: as cidades baianas onde a política vira torcida de futebol

 

A rivalidade política em Muritiba, no recôncavo baiano Crédito: Divulgação

Gaviões, azuis, boca branca e boca preta… experiência política no interior é demarcada por rixas e antagonismos

Em Muritiba, no recôncavo baiano, um vereador já teve que pintar às pressas a fachada da sua nova casa para não infringir a etiqueta política. Pintada de amarela, a residência poderia denunciá-lo como um “babonete”, o grupo político rival ao seu, que usa a cor do céu como símbolo. Os “jacus”, como ele, são adeptos do azul, e todo mundo sabe disso.

A experiência política em cidades do interior — sobretudo as de pequeno e médio porte — é marcada por essa rivalidade entre dois grupos políticos. E o antagonismo vira uma marca cultural, refletido por apelidos inspirados em músicas, histórias e gozações.

“Quanto menor o interior, mais forte é essa realidade”, explica o historiador Marcos Batista, que pesquisou, no mestrado pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb), os rivais jacus e os beija-flor, de Santo Antônio de Jesus.

Na pesquisa, Batista investigou também os possíveis motivos para isso acontecer. E não só em Santo Antônio. Os partidos, por si só, tiveram dificuldade de se firmar na experiência política local. “Até o fato de ter menos festividades [nessas cidades] impacta. A política surge como um evento, time de futebol.Vira cultura”.

O “apadrinhamento”, simbólico e literal (com água benta, na igreja), de nativos por políticos dá contornos de intimidade à disputa, o que fortalece o antagonismo. “Não só os apadrinhados ganham empregos e outras moedas de troca, como há crianças que realmente são batizadas por políticos, o que cria laço de lealdade, e se cria uma familiaridade”, completa Batista.

A industrialização e crescimento das cidades, no entanto, tende a enfraquecer os times políticos. “A dependência pode mudar”, explica Batista, “o que não significa o fim desse antagonismo histórico”.

Crédito: Divulgação Prefeitura SAJ

Santo Antônio de Jesus: jacu e beija flor

A história dos rivais políticos de Santo Antônio de Jesus, no Recôncavo Baiano, é de dissidências e conchavos. Ela começa em 1962. O primeiro grupo a surgir no páreo, com um nome, é o beija-flor, formado por separatistas do extinto Partido Republicano, que reinava na cidade sob as rédeas de Antônio Fraga, prefeito da cidade nos anos 40 e 50.

“Aos poucos, esse grupo foi ganhando força e uma música inspirou sua existência”, explica o historiador Marcos Batista, que estudou, no mestrado pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb), os conflitos políticos do município. A música era “Meu Beija-Flor”, composta por Onildo Almeida e eternizada pela cantora Marinês. De um novo racha interno surgem os rivais – os Jacus. “Diferentemente de outros lugares, onde o Jacu é usado para se referir ao perdedor, em Santo Antônio, não”, ressalta Batista.

Mas, dessa vez, não é uma canção que inspira o apelido. Os dissidentes se reuníam em uma sobrado da família, onde existia uma espécie de pequeno zoológico, formado por vários bichos. Entre eles, estavam as aves jacu. “Daí que a população passou a dizer, quando tinham esses encontros: ‘lá vai a jacuzada’”, afirma o historiador.

Em Santo Antônio, a insignificância das ideologias é revelada pela homogeneidade dos rivais: ambos são filiados a partidos de direita ou centro, e já estabeleceram alianças em diferentes momentos históricos.

Em julho deste ano, por exemplo, o ex-prefeito Euvaldo Rosa (PSD), um Jacu, e outro ex-prefeito, Humberto Leite (PP), dos Beija-Flor, sacudiu as estruturas. Principalmente porque outro beija-flor, Genival Deolino (PSDB), tenta reeleição contra Euvaldo e um candidato da terceira via, Edvaldo “da recôncavo” (PMB). “Mas isso não muda em nada a rivalidade local, mesmo que algumas pessoas tenham ficado tristes”, acredita o pesquisador Marcos.

Para o historiador, os rivais são como “os democratas e republicanos dos Estados Unidos”: “existem muitas diferenças internas nos próprios grupos”.

Crédito: Carol Garcia/ GOVBA
Campo Formoso: boca branca versus boca preta

Desde o início da República brasileira, em 1889, a política em Campo Formoso, no norte da Bahia, se desdobra em apelidos. Os pioneiros foram os grupos liderados por José Gonçalves, que vivia na Fazenda Piabas, e o Coronel Antônio Pereira Guimarães Filho, residente no núcleo urbano.

“Aí os apoiadores de Dr. José viraram os ‘Piabas’, em referência à moradia dele, e o outro ‘papa-mel’, já que Antônio, como bom sertanejo, era chegado à alimentação de mel com farinha de mandioca”, explica o historiador José Carlos Martins, especializado nas tramas locais.

O falecimento dos oponentes suspendeu o uso dos apelidos políticos, até uma certa brincadeira de “boca branca” e “boca preta” surgir. Nas eleições de 1974, concorreram à Prefeitura Rômulo Galvão de Carvalho e Luis Alberto Prisco Viana.

No bigode do primeiro candidato, mais velho, despontavam os fios brancos. “Já Luís possuía um vasto bigode, bem preto. E em um determinado dia, um garimpeiro saiu com um pejorativo no bom sentido”, narra o historiador José. “São o boca preta e o boca branca”, brincou o catador de pedras preciosas.

A partir daí, a cidade se dividiu entre os “boca preta” e “boca branca”, sem espaço para tons intermediários. O negócio era, e é, levado tão a sério que, antes de um comício de Prisco Viana, os homens foram avisados com antecedência para aparecerem bigodudos no evento.

Aqueles que não tivessem pelo o suficiente que improvisassem com tinta preta ou pelos postiços. O inverso também aconteceu. Quem tinha bigode preto tratou de raspar. Os grisalhos tiveram entrada livre.

“E parece que assim vai continuar por muitos e muitos anos. nisso se resume a política, não esquerda e direita”, projeta José.

Hoje, quem comanda a cidade é o grupo dos ‘boca branca’, representado por Elmo Nascimento (irmão do deputado federal Elmar Nascimento), que tenta reeleição pela união brasil. A adversária dele é Denise Menezes, que também tem sobrenome e herança na política local: é esposa do deputado estadual Adolfo Menezes.

Divulgação: Prefeitura de Muritiba

Muritiba: Os babonetes e os jacus

Dizem que, em Muritiba, o centro é mais azul, e o amarelo colore mais os bairros das periferias, como o Paraguai e Buri.

Os tons refletem o antagonismo político na cidade do Recôncavo baiano: todo mundo sabe que a cor do céu pertence aos babonetes, e a dos girassóis aos jacus. “Já teve casa aqui cuja fachada era amarela e teve que mudar para azul, senão iam achar que era casa de jacu”, conta uma moradora que prefere não ser identificada.

Os apelidos dos adversários surgiram no início dos anos 2000, quando Epifânio Marques Sampaio, ex-prefeito, chegou ao poder conhecido por um nome inspirado em seu apelido de infância — Babão. “Os seguidores, então, viraram os babonetes”, explica a nativa anônima.

Já os “jacus” passaram a ser chamados assim por uma brincadeira conhecida, inclusive em outros interiores baianos. “Geralmente, é chamado assim o lado que perde”, completa ela. Já o motivo da definição das cores pelos rivais não está bem claro, mas há um palpite.

Os babonetes sempre foram vistos como um grupo “de elite econômica” local, o que indicaria sua inclinação à direita. Como o azul, historicamente, é escolhido pelos partidos dessa ala, veio a calhar para os babonetes.

O amarelo dos jacus denota a oposição. “São um grupo mais relacionado ao povão, talvez à esquerda”, afirma a moradora. A briga mais acalorada do momento na política da cidade é, inclusive, sobre a posse das cores.

Mãe Mara, uma das candidatas à Prefeitura, é jacu, mas usou o azul em um evento recente. Os babonetes, todos vestidos de azul e rodeados por balões dessa cor, reagiram na convenção do dia 4 de agosto: “Essa cor vai ser sempre herança nossa. O azul é nosso.”

“É uma gincana, não há ideais e ideologias. Qual é a filosofia de tal partido? Eles não conhecem, e não interessa”, acredita a moradora entrevistada.

A rivalidade, no entanto, nem sempre é tão ingênua assim. Em março do ano passado, por exemplo, uma sessão na Câmara Municipal terminou em uma confusão generalizada entre vereadores.

Cícero Dantas: os Jacu e os Gavião

No início dos anos 90, o cantor cearense Alcymar Monteiro emplacou o sucesso “Penera Gavião” [O cavalheiro pega a dama pela mão/É aí que a gente vê o bote do gavião]. Bem distante de onde o artista despontou, a canção serviu a outro propósito. Tocada à exaustão em festas e eventos políticos de Cícero Dantas, no Nordeste da Bahia, a música inspirou o surgimento de um grupo político.

“Foi aí que o Gavião surgiu”, explica a conhecedora da história local Ruth Oliveira. “E o próprio Gavião simbolizou o que seria o outro lado…. o jacu”, acrescenta ela, que faz parte dessa ala.

A escolha do nome do oponente era uma analogia pejorativa às características políticas desse grupo, segundo Ruth. As aves jacu são definidas pelo temperamento dócil, e os gaviões, que hoje estão no poder, queriam insinuar que os eleitores e políticos jacu, portanto, eram fracos em disputas. “O jacu não era de briga, de revanche, era mais pacato. Enquanto os gaviões partiam para cima”, perfila Ruth.

O principal sobrenome por trás dessa disputa era a família Vieira, a mais tradicional da cidade, simbolizada pelos jacus. Antes dos jacus e gaviões, no entanto, os rivais já reivindicavam nomes próprios.

No engatinhar da República, os conservadores ligados ao Barão de Jeremoabo e aos Dantas eram conhecidos como “Urubus”. Os apoiadores liberais dos outro grupo, ligado ao Padre Caetano e Coronel Salles, eram chamados de “Pebas”. Décadas depois, entre os anos 20 e 40, rivalizavam o Boca Preta – nome que não tinha nada a ver com bigode, mas a um cachorro de caça – e os Barriga d’água.

Mutuípe: azul versus vermelho

O termômetro político de Mutuípe, no Vale do Jiquiriçá baiano, é a Praça Góes Calmon, no centro comercial da cidade. “No dia da eleição, quem ocupa a praça mais cedo sabe que ganhou a disputa”, conta o radialista Junício Júnior. Durante 60 anos, um grupo político, sem nome na época, reinou nessa arena pública. O “zoião” era o termo usado para definir qualquer candidato que estivesse, claro, de olho na Prefeitura.

A vitória de um petista – que era o maior “zoião” das disputas – em 2000 pôs fim a uma dinastia liderada pela família Rocha. E iniciou um novo ciclo de rivalidade. O “zoião”, a partir daí, passou a ser chamado de “vermelho”, herança da cor do partido dos trabalhadores (PT), e os antigos mandatários da terra viraram os “azul”.

O nome da praça central do município. No auge dessa briga, por pouco não foi modificado para homenagear os vencedores, o que não aconteceu. Hoje, o poder está nas mãos do “azul”, após a temporada de 16 anos dos “vermelhos” na prefeitura. Alheia a essas oscilações, uma brincadeira persiste: “quem perde sempre é chamado de jacu, independentemente do lado”, explica o radialista.

Já quem ganha a disputa leva mamão para a praça Góes Calmon para comemorar a vitória. O ato é uma provocação aos jacu-gente, pois os jacu-bicho se alimentam dessa fruta.

Correio 24Hs 


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