Ipiaú: Albione Souza comenta e relembra os 60 anos da Fazenda do Povo

 

Euclides Neto, o prefeito modelo e sua reforma agrária em Ipiaú

De 1962 a 1963, a região sul da Bahia passa por um período de seca, gerando no município de Ipiaú e em outras localidades inúmeras demissões de trabalhadores rurais. Motivado por este problema de ordem climática, o prefeito de Ipiaú, desapropria uma área rural com 157 hectares, a 11 Km da sede do município, espólio de Ezidro Nunes Rezende, conhecida pelos nomes Bury, Santo Antônio e Bom sem Farinha.

Essa iniciativa, considerada a primeira desapropriação de terra com fins de reforma agrária, efetuada por um prefeito no estado da Bahia, teve o propósito de possibilitar aos trabalhadores desempregados a manutenção de suas famílias através da produção de horticulturas numa propriedade pública de usufruto coletivo.

Euclides Neto (chapéu branco) junto com posseiros erguendo o cruzeiro do cemitério da Fazenda do Povo (1963) Acervo da família

As concepções políticas progressistas obtidas durante seus estudos em Salvador e sua sensibilidade diante das agruras vividas pelos trabalhadores das roças de cacau influenciaram na decisão de socializar uma propriedade privada (fazenda de cacau) como meio de combater as injustiças e as desigualdades sociais. Desse anseio nasceu uma propriedade rural municipal (estatal) coletiva, onde não existiam patrões nem empregados, a terra era utilizada para a produção de alimentos vendidos nas feiras livres da cidade, diferentemente do modelo utilizado nas fazendas da região cacaueira voltado para a monocultura do cacau para exportação. Os primeiros moradores do local batizaram-na de “Fazenda do Povo”.

A área rural desapropriada possuía 157 hectares, a qual foi partilhada entre 77 famílias de trabalhadores rurais desempregados. Posteriormente, esta experiência pioneira de reforma agrária no Estado da Bahia foi batizada pelos próprios trabalhadores com o nome de “Fazenda do Povo”. Sobre as condições de vida dos trabalhadores das roças de cacau, Antônio Guerreiro de Freitas e Maria Hilda Paraíso afirmam que as condições de trabalho praticadas na região cacaueira eram precárias, com extenuantes jornadas de trabalho e baixos salários, precarizando as condições de sobrevivência das famílias dos trabalhadores rurais.[1]  No livro 64: a revolução o prefeito e os jumentos, Euclides Neto explicou sua motivação para a criação da “Fazenda do Povo” [2]:

[a Fazenda do Povo] Nasceu da vontade de fazer uma experiência socialista, sem ficar somente na proveta do laboratório de sociologia e política. (…) Com as secas e as fazendas despejando gente, quem mais sofria era o pai de família numerosa, o velho de braços flácidos, o homem de pereba na perna, a mulher abandonada que descaroça cacau e oferendava amor, mas chega ao ponto de não ter mais carne, porque a fome transformou-a em bagaço seco: sem forma nem gosto. Era o que chamamos de sucata de gente. [3]

Logo após a desapropriação que deu origem à experiência de reforma agrária em Ipiaú, a imprensa local, através do Jornal Rio Novo, publica em 22 de julho de 1963 uma matéria sobre a “Fazenda do Povo”, referindo-se ao ineditismo da iniciativa no estado da Bahia. Tratando-se de uma propriedade estatal com usufruto dos posseiros, a área desapropriada, estrategicamente, fornecia alimentos orgânicos para a merenda escolar da rede municipal de ensino em Ipiaú. Os posseiros da Fazenda do povo levavam o excedente de sua produção de hortaliças e verduras para as feiras livres de Ipiaú, garantindo uma renda regular para a manutenção das suas famílias. [4]

Na imprensa nacional, a notícia da desapropriação de terras teve sua veiculação por meio do jornal Última Hora. Em sua matéria, publicada em 18 de agosto de 1963,

Extensa área de terras e está distribuindo-a com os que são despedidos das fazendas de cacau, pelo simples fato de terem filhos’.[5]   jornal carioca divulga uma denúncia tratando da grande quantidade de trabalhadores demitidos por cacauiculltores, pelo fato dos trabalhadores possuírem numerosa prole. Na mesma matéria, intitulada A ganância contra a prole, conforme citação a seguir, o jornal reverbera a experiência de reforma agrária em Ipiaú, com a criação da “Fazenda do Povo”, como forma de socializar áreas rurais entre famílias de trabalhadores rurais, desempregados, despossuídos da terra para o cultivo:

A denúncia mais grave foi levada ao governo pelo prefeito de Ipiaú, Sr. Euclides Neto: os grandes fazendeiros de cacau estão recusando empregar trabalhadores de prole numerosa, gerando um problema de desemprego em condições desumanas. Revelou também que os trabalhadores do sul chegaram ao ponto de esconder os filhos dentro das matas para que não sejam descobertos pelos capatazes das fazendas de cacau, pois se o forem serão fatalmente despedidos.

Euclides Neto com um posseiro (não identificado) da Fazenda do Povo em 1963. Acervo da família

Essa iniciativa de socialização, uma das primeiras experiências de reforma agrária realizada por um prefeito no estado da Bahia, que significou “a transformação da propriedade privada dos meios de produção em propriedade social”, [6] foi decisiva para que grupos políticos conservadores o acusassem de “comunista”. Em artigo publicado na Revista História Viva, Muniz Ferreira afirma:

Euclides Neto –  que na juventude desposara ideias socialistas, tendo militado no Partido Comunista Brasileiro (PCB) quando estudante universitário em Salvador – atraíra para si as atenções ao empreender uma gestão marcada pela sensibilidade social e, horror dos horrores, pela desapropriação de uma fazenda do município para fins de reforma agrária. Visitado por uma junta militar e submetido a um Inquérito Policial Militar (IPM), o qual se estendeu de abril de 64 a dezembro de 65 […]  [7]

Em matéria publicada pelo jornal A Tarde, em 20 de maio de 2000, intitulada Um espírito livre, o jurista e político Josaphat Marinho (1915-2002), em visita ao município de Ipiaú, na ocasião da implantação da Fazenda do Povo, durante a gestão de Euclides Neto, relata:

Numa de minhas visitas ao município, ele era o prefeito e havia organizado a “Fazenda do Povo”, para propiciar o trabalho disciplinado em gleba, a quem não a possuísse. Vi o seu entusiasmo nessa tarefa, sem receio das desconfianças do poder militar vitorioso. E vi como a gente simples frequentava a prefeitura. A ação do poder público era coerente com as ideias que desenvolvia, nos livros e nos escritos diversos. Deixando aos especialistas a análise de sua obra, dela quero salientar a expressão de sua compatibilidade com os deveres do homem público. Era um ser de pensamento livre. Não opinava para agradar, até porque vivia com independência. Formulava juízos e comentários para exprimir seu julgamento espontâneo. Fazia-o em linguagem correta e apropriada. Criticando, seu estilo era forte, sem agressividade injusta. Elogiando, tinha a justa medida de quem não bajulava. Podia ser generoso, sobretudo com quem não estivesse na culminância do poder.[8]

Placa com data da chegada dos primeiros posseiros na “Faz. do Povo” (1963).

Para Euclides Neto, a sua experiência de reforma agrária demostrou que não só de cacau se podia viver no sul da Bahia. Suas orientações aos posseiros eram que não se cultivasse fumo, mandioca nem cacau, pois são produtos de longa espera de produção. Sugeriam-lhe que trabalhassem com culturas de rápido ciclo produtivo como cebola verde, coentro, tomate e legumes. Após a divisão dos lotes, cada um com aproximadamente três tarefas, equivalente a 4.356 m², a prefeitura solicitou ao Banco do Brasil que abrisse uma linha de crédito aos trabalhadores rurais para a compra de insumos agrícolas e uma vaca leiteira para a criação coletiva.[9]

Além das polêmicas em torno da fazenda do povo geradas em torno das motivações ideológicas, Paulo Roberto Santos Cerqueira, relata que, mesmo após o fim do Inquérito Policial Militar (IPM) absolvendo Euclides Neto, seus opositores o acusavam de ter entregue lotes aos trabalhadores da fazenda do seu pai, no município de Ibirataia, como forma de indenizá-los. No entanto, levantando o cadastro de todos os primeiros moradores da área desapropriada, constatou-se a inexistência de assentados com vínculos empregatícios anteriormente com a família do prefeito de Ipiaú.[10]

Albione Souza Silva – Mestre em História pela UNEB- Alagoinhas. Autor do livro “Os Despossuídos da Terra” publicado pela Via Litterarum Editora, em 2021.

[1] FREITAS, Antônio Guerreiro de.; PARAÍSO, Maria Hilda. Caminhos ao encontro do mundo: A capitania, os frutos de ouro e a princesa do sul. Ilhéus: Editus, 2001. p.106.

[2] A desapropriação que originou a Fazenda do Povo ocorreu através do decreto lei municipal nº 965 de 8 de junho de 1963. Dessa forma, marcando a primeira experiência de reforma agrária da Bahia, por iniciativa de um prefeito.

[3]  TEIXEIRA NETO, Euclides José. 64, p. 100.

[4] Jornal de Rio Novo, Ipiaú, 22 de junho. 1963, p. 1.

[5] Jornal Última Hora, Rio de Janeiro, 18 de agosto de 1963, p. 7.

[6]  BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 342.

[7] FERREIRA, Muniz. A guinada na Bahia, com o golpe de 1964. Revista História Viva. São Paulo, ano 3, n. 26, p. 89, dez.2005.

[8] MARINHO, Josaphat. “Um espírito livre”. Jornal A Tarde, Salvador, 20 de maio de 2000, Caderno Cultural p. 5.

[9] TEIXEIRA NETO, Euclides José. 64, p. 103.

[10] CERQUEIRA, Paulo Roberto Santos. “A tentativa de Reforma Agrária na Fazenda do Povo na cidade de Ipiaú de 1963 a 1967”. (TCC da graduação em História, Universidade Estadual de Santa Cruz-UESC, 2002. p. 29.).


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