Foto: Hugo Barreto / Metrópoles
Os gastos com gás de cozinha vendido em botijões de 13 kg comprometem 22% do orçamento doméstico destinado a serviços públicos das famílias mais pobres do Brasil, o que inclui energia elétrica, água, esgoto, telefone e impostos. Para os mais ricos, a parcela é de 13%.
É o que diz o estudo realizado pela consultoria Kantar em 4.915 domicílios, em 2021, quando ainda não era possível sentir os efeitos do mega-aumento promovido pela Petrobras nos combustíveis. Segundo o levantamento, a elevação do preço do gás é especialmente crítica entre as classes mais baixas.
O estudo da Kantar mostra ainda que, entre 2020 e 2021, a parcela do orçamento gasta com gás de cozinha aumentou 25% para as famílias de classes D e E. Nas classes A e B, o mesmo gasto teve alta de 16%.
Para os mais pobres, o custeio do gás é o segundo maior gasto em serviços, empatado com água e esgotos e atrás apenas da energia elétrica, que, em 2021, correspondeu a 51% do orçamento de serviços nessas classes.
O estudo também mostra que, quando se consideram todas as classes sociais, o gás ocupa o terceiro lugar no orçamento dos serviços básicos das famílias, perdendo para água e luz. No entanto, entre 2020 e 2021, todas as classes viram crescer a parcela de custeio com o insumo.
Embora o aumento seja generalizado, os impactos do preço são sentidos de forma diferente entre as famílias, principalmente nas periferias, onde estão os lares de menor renda. Com dificuldade para comprar alimentos, usar gás de botijão no cozimento torna-se, muitas vezes, inviável.
Esse é o caso da cuidadora de idosos Fernanda Pinheiro, 34 anos, que hoje cozinha para sua família com alimentos que recebe de doações, queimando madeiras que encontra na rua em um fogão a lenha improvisado. Moradora do bairro Parque Santo Antônio, na zona sul de São Paulo, ela conta que, há mais ou menos um ano e meio, a maioria de suas vizinhas também não consegue comprar gás.
Antes disso, Fernanda nunca havia precisado usar lenha para cozinhar — no máximo, para esquentar a água do banho na sua infância, prática que a família depois para trás após perderem parte da casa em um incêndio causado por falhas na rede elétrica.
Desde 2021, porém, a prática voltou. Às vezes, ela utiliza uma panela elétrica que recebeu como doação, mas nem sempre isso é possível. “Eu vou preparar a comida no fogão a lenha, porque o dinheiro do gás vai sobrar para comprar alguma outra coisa, um pacote de fralda ou de absorvente”, diz.
PROFESSOR ORGANIZA VAQUINHA
O professor de geografia da rede municipal paulista Alessandro Rubens organiza desde 2020 o Periferia e Solidariedade, projeto de doação de mantimentos para famílias de baixa renda. Ele conta que, nesse período, viu aumentar os relatos de incêndios em comunidades e ocupações urbanas.
“Na favela, o fogão a lenha implica aumentar riscos”, afirma o professor. “Geralmente, eles [os moradores] colocam blocos de cimento e muitos estouram, e o risco de acidentes é muito grande.” No ano passado, o grupo mobilizou fundos para comprar remédios para uma pessoa que se queimou em um acidente desse tipo.
O projeto doa cestas básicas, refeições e produtos de higiene de forma rotineira, e Rubens conta como a demanda por gás é enorme e impossível de ser atendida. Por isso, as vaquinhas para doações de botijões de gás são direcionadas a mães com mais de um filho. “Dentro de casa, com mais de uma criança, é muito perigoso cozinhar [de forma improvisada]”, justifica.
MÃE FAZ REVEZAMENTO PARA ECONOMIZAR
A auxiliar de produção Samantha Silva, 33, reveza o preparo dos alimentos entre um fogão elétrico e um a lenha, que é comunitário e improvisado, construído por um vizinho. Às vezes, cozinha também na churrasqueira que há no quintal de sua mãe, também feita pela família.
Ela diz que, com o revezamento, consegue economizar o gás ao máximo para alimentar as duas filhas de 10 e 15 anos. Samantha também usa um fogão elétrico quando consegue e conta que é difícil adaptar o tempo de preparo dos alimentos ao contato direto da panela com o fogo.
Há três meses, a auxiliar de produção mora em uma ocupação irregular, pois, sem renda, vive um dilema: “Ou você paga o aluguel ou você compra o gás, ou a comida”. Beneficiária do Auxílio Brasil, ela chegou a receber o vale-gás no valor de R$ 52, mas acabou usando o dinheiro para comprar alimentos.
INFLAÇÃO DO GÁS
Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostram que a inflação do gás de cozinha em 2021 foi de 36,99%, muito acima do índice geral da inflação oficial, o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), que fechou o ano em 10,06%.
Hoje, na cidade de São Paulo, botijões de 13 kg são vendidos por até R$ 150 e mais da metade das vendas é parcelada no crédito, segundo dados do Sergás (Sindicato das Empresas Revendedoras de Gás, da Grande São Paulo). Enquanto nas comunidades multiplicam-se os fogões improvisados, os revendedores veem as vendas caírem, em média, em 20%.
Presidente do Sergás, Robson Carneiro dos Santos diz que o gás de cozinha é a melhor opção para cozinhar em todo o mundo, pois não coloca em risco a saúde. Além dos acidentes, a queima de outros materiais como a madeira e álcool libera gases e partículas tóxicas para o pulmão, que podem causar DPOC, doença pulmonar obstrutiva crônica.
Para se manter, o setor tem tentado não repassar o percentual cheio de reajuste aos clientes, o que ocasionou demissões nas empresas da área. No último ano, para pagar o aumento salarial de 10% dos funcionários das revendas sem aumentar o valor final do botijão, as empresas viram um aumento de 30% nas demissões.
“A gente não conseguiu repassar esse aumento, o preço do gás ficou o mesmo”, conta. “A revenda absorveu esse gasto, o consumidor não consegue mais. Já é muito difícil pagar.”
MANICURE USA BOTIJÃO DA IRMÃ
Elma Soares, 35, moradora da região norte de Belo Horizonte, conta que, nos últimos tempos, tem tirado dinheiro das compras de supermercado para comprar o gás. Mãe de três filhos, de 4, 12 e 14 anos, ela afirma que antes mal contabilizava o preço do gás no orçamento doméstico.
“Se eu fosse uma pessoa sozinha, sem filhos, sem nada, eu me viraria de qualquer forma. Mas quando você tem três crianças em casa, como você não se vira para comprar um gás?”, diz.
Quando não tem dinheiro, Elma e sua irmã, que é vizinha, dividem um botijão até que consigam comprar o próximo. “Antes, como era um valor mais baixo, às vezes eu recorria a alguém que emprestava dinheiro ou ‘emprestava’ o gás: ‘você compra e depois me devolve’. Mas, com esse valor, não é com todas as pessoas do meu ciclo que eu consigo fazer isso”, conta.
VALE-GÁS NÃO É SUFICIENTE
O economista do FGV/Ibre (Instituto Brasileiro de Economia), André Braz, explica que “é natural que quando um energético [o gás] fique caro, o consumo de lenha aumente.” E a tendência, segundo ele, é que o preço do gás continue em alta.
Braz acredita ser improvável que o valor diminua enquanto durarem as sanções à Rússia, segunda maior produtora de petróleo do mundo.
Para tentar diminuir os impactos do custo do gás nas famílias em 2021, após sucessivos reajustes da Petrobras, o Congresso aprovou projeto do deputado Carlos Zarattini (PT-SP), que pevê a distribuição de um vale no valor de 50% da média do preço do botijão de 13 kg nos últimos seis meses, segundo pesquisa da ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis).
O programa Auxílio Gás passou a pagar, em dezembro, a quantia a famílias que fazem parte do CadÚnico (Cadastro Único). A última remessa, em fevereiro, repassou R$ 279 milhões para 5,5 milhões de famílias, em vales de R$ 50.
Em São Paulo, o programa Vale Gás, do governo do estado, distribuirá, neste ano, R$ 256,1 milhões em vales bimestrais de R$ 100 para famílias em situação de vulnerabilidade social. Em fevereiro, 32,2 milhões de pessoas foram contempladas com o benefício.
Já a Petrobras prevê um orçamento de R$ 270 milhões para diminuir os impactos do aumento dos preços nas famílias de baixa renda. A empresa realiza doações de auxílios para compra de gás para as comunidades nos arredores de onde opera, além de destinar também doações de gás em todo o país para instituições que realizam arrecadação de alimentos e que fornecem alimentação para pessoas em situação de rua em grandes centros urbanos.
Para Braz, no entanto, as medidas são paliativas, porque o preço do combustível pode continuar subindo, e a inflação pode continuar reduzindo o poder de compra dos consumidores. “Você tem vários problemas paralelos que vão minando o orçamento dos menos favorecidos”, diz.
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