A possibilidade de faltar azeite de dendê na Bahia levou muita gente a repensar o momento que estamos vivendo. Boa parte dos que desconfiavam de que estamos perto do fim do mundo agora têm certeza. A pergunta é: para além das nossas crenças, cheias de misticismo e sincretismo, existe uma causa real para a escassez do líquido sagrado? Na quinta-feira, mostramos que a baixa produção da safra deste ano na Costa do Dendê, aliada ao prologamento do período de entressafra, era o problema.
A questão, porém, é muito mais complexa. Ouvimos produtores, cooperativas, especialistas e o próprio governo do estado para entender essa fase apocalíptica da nossa cultura gastronômica, que amplia a crise de todos os envolvidos na cadeia, inclusive as baianas de acarajé. Além da safra, que realmente sofreu um baque climático com o excesso de sombra (baixa luminosidade) entre julho e outubro de 2019, há também uma constatação assustadora: a Bahia, a terra do dendê, quase sempre produz menos óleo de palma do que poderia e do que deveria.
E isso vem de anos. As 36 mil toneladas anuais (último dado é de 2017) quase sempre são insuficientes para suprir o nosso mercado consumidor, que só cresceu nas últimas décadas. Um problema que teria origem na falta de investimentos no princípio do ciclo do dendê, ou seja, relacionado aos agricultores familiares e empresas que trabalham na colheita do produto. Sem apoio, eles estariam abandonando a extração dos cachos do fruto, o que teria sido agravado com a crise do novo coronavírus. Até porque a colheita do dendê é muito difícil. Ainda hoje, o chamado cortador de dendê sobe em pés de até 25 metros de altura com equipamentos rústicos.
Mão de obra
“As pessoas não querem se arriscar a esse trabalho aqui na região. A falta de mão de obra tem sido um grande problema“, explica Demétrio Souza D´Eça, presidente da Cooperativa dos Pequenos Produtores Rurais (Coomtrata), com sede em Nazaré das Farinhas, que atende tanto aos municípios do Recôncavo quanto aos cooperados do Baixo Sul e da Ilha de Itaparica. Além disso, ele aponta a necessidade da renovação dos dendezais baianos: “Há mais de dez anos, os produtores têm alertado sobre a necessidade de renovar tanto os pés de dendê nativos quanto o chamado dendê tenera, originário da região amazônica”.
Isso seria feito com investimentos na agricultura familiar por parte do governo e dos bancos. Demétrio calcula que as poucas empresas locais conseguem extrair apenas entre 2 ou 3 toneladas de dendê tenera por hectare. No caso dos produtores menores, que produzem o dendê comum, extrai-se apenas 1 ou 1,5 tonelada por hectare.
Houve época que uma das empresas da cooperativa chegou a produzir 18 toneladas por hectare, quando havia recursos disponíveis para agricultores e empresas. “Quem tem uma roça de dendê precisa fazer adubação e limpeza do fruto. Os recursos para isso estão escassos. A Bahia tem potencial para produzir muito mais. Essa baixa produtividade do fruto, claro, provoca baixa produção de óleo”, explica Demétrio.
O professor Alcides Caldas, do Instituto de Geociências da Universidade Federal da Bahia, trabalha diretamente com produtores de 23 municípios da Costa do Dendê. Ele confirma que falta investimento, políticas públicas de assistência técnica, renovação e ampliação dos plantios: “São dendezais muito altos, que dificultam o corte e a reprodução. Cada vez mais os profissionais que sobem para fazer o corte se torna uma atividade escassa. Os dendezais estão sendo abandonados”.
Ele diz que falta tecnologia e assistência técnica à agricultura familiar: “Existe um patrimônio que precisa ser mantido e renovado. Precisamos de um salto de qualidade. São mais de 300 anos de produção em uma paisagem herdada da África e que sustentou muitas famílias ao longo desse tempo”.
Além de tudo, parte do dendê produzido na Bahia é destinado a duas empresas petrolíferas, uma delas a Petrobras, que levou parte da safra para a produção do biodiesel. Mas, mesmo essas, não foram supridas no que precisariam. “Esse ano, só destinamos para o biodiesel 5% do que está previsto em contrato com as empresas”, explica Demétrio D´Eça. Não é a primeira vez que isso ocorre. A nossa produção tem sido baixa há muito tempo. A solução normalmente é adquirir o dendê que vem do Pará. Mas, este ano, as empresas paraenses investiram mais em exportação, segundo os distribuidores da Bahia.
Investimento
Diante da baixa produção, o governo do estado anunciou nessa quinta-feira um investimento para apoiar o sistema produtivo do dendê. A Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional, empresa pública vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Rural, vai destinar R$ 2,2 milhões para ações voltadas ao processamento e beneficiamento do dendê nos territórios do Baixo Sul e Recôncavo.
Em nota, a SDR informou que os investimentos são executados por meio do Projeto Bahia Produtiva e visam dotar os agricultores familiares e suas organizações produtivas de infraestrutura, com a implantação de unidades modernizadas de beneficiamentos e processamento de dendê.
A SDR confirmou que a baixa luminosidade nos dendezais contribuiu para a redução da oferta do azeite de dendê, que segundo fabricantes teria caído entre 20% e 30% em relação aos anos anteriores. “Esse fator é cíclico e provoca a diminuição da produção do fruto da palmeira e a redução da oferta do azeite de dendê, elevando o preço do produto”, informou.
Uma das lutas para melhorar as condições dos produtores na Bahia é a criação da chamada Indicação Geográfica (IG) da Costa do Dendê, uma espécie de selo de qualidade para proteger que está no front da cadeira produtiva. A IG é semelhante ao selo que existe para identificar produtores como o champanhe e do vinho do Porto, produzidos em regiões específicas.
No Brasil, segundo o professor Alcides Caldas, há 70 IGs. No Nordeste são 14. Na Bahia são quatro indicações geográficas: as uvas e mangas do São Francisco, a cachaça de Abaíra, o café da região oeste e as amêndoas do cacau. A IG visa garantir a autenticidade, a qualidade e a proteção dos produtores. “Se outro azeite de dendê chega aqui não pode receber o rótulo de empresas da região. Isso é falsificação e hoje acontece muito com o dendê que vem do Pará”, explica.
O relatório, que tem como um dos responsáveis o professor Alcides, está em fase de elaboração para ser encaminhado para o Instituto Nacional da Propriedade Industrial e vai sustentar a tese de que o dendê baiano é extremamente singular. “Estamos criando um sistema agro ecológico que atende diversos critérios de sustentabilidade. Além disso, sustentamos a importância do dendê para a culinária. Simbolicamente, é um dos produtos mais importantes da gastronomia brasileira. E usaremos também a sustentação da importância para as religiões afrobrasileiras”, explica.
O objetivo é também criar um laboratório para garantir a qualidade do dendê. Através da Bahiater, a SDR diz que apoia a iniciativa.
Correio
Veja mais notícias no Ipiaú Online e siga o Blog no Google Notícias