Na cadeia, Adélio se estabiliza, lê livros e ganha apoio para transferência a MG

A reação de quem chega à entrada da penitenciária federal de Campo Grande é levar a mão ao nariz. O presídio em Mato Grosso do Sul fica ao lado do aterro sanitário da cidade.

Urubus vasculham o lixo e depois sobrevoam o conjunto de celas vigiado rigidamente por guardas e câmeras. Nos dias quentes, os mais frequentes na região, o cheiro beira o insuportável.

Um dos encarcerados ali é Adélio Bispo de Oliveira, 41, esfaqueador do hoje presidente Jair Bolsonaro -ele está preso desde setembro de 2018.

Na guarita externa, moscas perseguem familiares de presos à espera da hora da visita. Parentes de Adélio nunca passaram por ali -eles moram em Montes Claros (MG) e não têm dinheiro para a viagem.

A última vez que o encontraram foi há cerca de três anos. A situação poderá mudar se a Defensoria Pública da União, que assumiu a defesa de Adélio em dezembro, for vitoriosa no plano de levá-lo para uma unidade em Minas.

Como a Folha de S.Paulo mostrou em setembro, Adélio escreveu carta à família clamando pela transferência. Na época ele ainda era defendido pelo advogado Zanone Manuel de Oliveira, que deixou o processo, mas continua como curador (responsável legal).

A Defensoria quer convencer a Justiça de que a penitenciária em Campo Grande não é o lugar ideal para o tratamento mental do prisioneiro, que foi declarado inimputável, recebeu absolvição e é obrigado a cumprir medida de segurança, diferente de pena.

Ele é, de acordo com a Defensoria e pessoas que trabalham no complexo sul-mato-grossense, o único interno do sistema penitenciário federal com esse perfil.

O esfaqueador não preenche os requisitos necessários para ficar trancafiado nos estabelecimentos penais federais de segurança máxima, como ter liderado organização criminosa ou praticado delitos violentos em série.

Profissionais familiarizados com o caso dizem haver um componente político na decisão de deixá-lo no local. Como se trata de um prisioneiro visado, agentes até evitam ter contato prolongado com ele.

Pelas regras, os funcionários só podem circular em duplas e falar com os presos apenas o indispensável.

As justificativas do Ministério Público Federal e da Justiça para manter Adélio na penitenciária são preservar sua integridade física, evitar risco de fuga e garantir que ele se submeta a tratamento. Zanone, o antigo defensor, também era favorável à permanência.

Há algumas semanas, a Defensoria procurou autoridades mineiras para saber se há no estado alguma instalação com condições de receber um preso que precisa de acompanhamento de saúde mental.

A consulta foi feita sem mencionar o nome do candidato, para evitar uma rejeição imediata. Minas ainda não respondeu se pode acolhê-lo, mas qualquer mudança só ocorrerá com aval judicial.

O juiz federal Bruno Savino, que absolveu o responsável pela facada, sempre apoiou a manutenção dele em Campo Grande. Em setembro, a estada no local foi renovada por mais um ano.

O juiz considerou que a medida de segurança é compatível com o ambiente da penitenciária federal em razão “da elevada periculosidade do preso e do concreto risco à sua vida” em outro endereço.

O Departamento Penitenciário Nacional se recusa a dar informações específicas sobre custodiados, mas os relatos obtidos pela reportagem dão conta de que Adélio aparenta estar mais tranquilo e centrado nos últimos dois meses.

Ele não aderiu aos remédios disponibilizados pelos médicos da instituição (geralmente são oferecidos ansiolíticos), mas passou a exibir menos sintomas do transtorno delirante persistente, diagnóstico que os médicos lhe deram.

Se antes eram frequentes os delírios, com afirmações de que a penitenciária fora construída com arquitetura maçônica e parecia um lugar de maldições repleto de satanismo, agora as mensagens que externa são sobre a vontade de ver a família, de ser libertado e de voltar a trabalhar.

A mudança de comportamento tem sido atribuída a orientações da Defensoria, que é favorável à sua ida para um estabelecimento prisional onde tenha direito a projeto terapêutico individual, ou seja, tratamento personalizado.

Adélio foi convencido também de que seu futuro depende de um bom comportamento no sistema. Isso será determinante, inclusive, para uma eventual soltura. Ao absolvê-lo, em junho de 2019, o juiz determinou que ele passasse por avaliação psiquiátrica três anos mais tarde, em 2022.

Perante a Justiça, o autor era inimputável na data do crime -isto é, incapaz de responder por seus atos ao enfiar uma faca no então candidato à Presidência, em evento de campanha em Juiz de Fora (MG).

Bolsonaro já disse ter vontade de ficar cara a cara com seu algoz para que ele “abra o jogo” sobre o que ocorreu no fatídico dia, já que teria “o que falar”. Ao saber da ideia, Adélio comentou não ter o menor interesse no encontro.

Na cela de 9 m² que ocupa (são 208 no presídio), de onde só sai para as duas horas diárias de banho de sol, Adélio tem uma Bíblia. Na biblioteca da prisão, costuma pegar emprestados livros jurídicos, que depois passa horas lendo.

Como ele oficialmente não cumpre uma pena, a leitura em nada ajuda a encurtar seu tempo de permanência atrás das grades. Pouco conversa com outros presos e se considera diferente da maioria dos vizinhos, que no passado integraram quadrilhas e esquemas de corrupção.

Para Campo Grande foram levados, por exemplo, o traficante Fernandinho Beira-Mar, chefes do PCC (Primeiro Comando da Capital) e o grupo que planejou ataques terroristas na Olimpíada de 2016.

A impressão de que Adélio parece mais equilibrado foi corroborada em outubro por advogados e membros da Polícia Federal que acompanharam um depoimento dele.

O homem que quase matou o então presidenciável foi ouvido pelo delegado da PF Rodrigo Morais, que investiga a possibilidade de comparsas ou mandantes do ataque.

O preso recusou uma oferta de delação premiada e repetiu que agiu sozinho. Sua versão é a de que cometeu o atentado a mando de Deus, para livrar o Brasil do perigo representado pelo político.

No depoimento, deu mostras de que abandonou a obsessão pela maçonaria (confraria mundial que carrega a pecha de sociedade secreta). Adélio acreditava que a organização estava por trás da chegada de Michel Temer (MDB) ao Planalto e teria relação com a campanha de Bolsonaro.

Agora, ele diz que tomou consciência do que julga ser uma ampla força da maçonaria, com braços no poder e na economia. E reconhece ser em vão qualquer atitude para, nas palavras dele, impedir as escolhas políticas desse grupo.

Para avançar, a apuração da PF sobre supostos mandantes ou comparsas depende principalmente da perícia em celulares e documentos apreendidos no escritório do antigo advogado, Zanone Oliveira.

O exame dos materiais foi brecado pela Justiça, sob o argumento de que violaria o sigilo profissional. A palavra final sobre o caso deverá ficar para o Supremo Tribunal Federal.

BN


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