Em 1961, Euclides Neto lançou o romance intitulado Os Magros. Publicado pela “Livraria Progresso Editora”, da cidade de Salvador; nessa obra, o autor apresenta o antagonismo entre a numerosa família de João, trabalhador rural e a família do fazendeiro, Dr. Jorge. A primeira é marcada pela miséria. A segunda, em outro extremo, ostenta suntuosidade e a opulência. Em cada capítulo do romance as cenas surgem em contrapontos, revelando as discrepâncias exacerbadas entre as famílias dos trabalhadores rurais vivendo na pobreza, e do abastado proprietário de grandes fazendas de cacau, onde ironicamente era chamada de “Fartura”.
Na obra, é pulsante a denúncia das estratificações e desigualdades sociais, fruto do modelo econômico ancorado na monocultura. Para além de ser um mecânico romance panfletário, sua literatura se revela como minucioso
instrumento de denúncia das injustiças sociais do sistema fundiário; ambiente marcado pelas precárias condições de vida, bem como por toda sorte de exploração e desrespeito à dignidade da pessoa humana, conforme expressam os personagens da trama.
Ao iniciar o primeiro capítulo de Os Magros, o narrador apresenta ao leitor o amanhecer da família de trabalhadores rurais que protagonizam a obra. João e sua esposa Isabel despertavam para o trabalho enquanto seus oito filhos dormiam amontoados no chão frio de terra forrado por uma esteira esfiapada. Todos mal alimentados, seminus, grunhindo penosamente de frio. João e Isabel tiveram quinze filhos, dos quais oito sobreviviam, todos menores de doze anos. O filho mais velho já seguia os passos do pai trabalhando nas roças de cacau. O caçula com três anos e meio ainda não sentava sozinho, tampouco mexia os braços e as pernas.
A família dos magros criava uma cachorra chamada Sereia, esquelética, acumulava pulgas em seu pelo esbranquiçado. A galinha chamada Bordada e seus pintos também habitavam no casebre de taipa coberto de indaiá junto com a família de esquálidos trabalhadores rurais.
A representação das adversidades vividas pela família do trabalhador rural João não se encerrava com a sua situação de miséria. Como se não bastasse, o facão que era a sua principal ferramenta de trabalho estava avariado, necessitando de sua troca por um novo. No entanto, a ferramenta custava cento e vinte e cinco cruzeiros, valor equivalente a uma semana de trabalho do agregado na fazenda do Dr. Jorge. Diante da dificuldade em alimentar e vestir seus filhos e esposa, João vê-se pressionado pelo gerente da fazenda a trocar a ferramenta velha por uma nova.
Encurralado pela situação desesperadora, depara-se com o absurdo em ter que reduzir ainda mais seus parcos recursos com a sobrevivência da sua família para juntar dinheiro para a compra do facão. Com essa situação de penúria, Euclides Neto constrói uma representação das agruras vividas por famílias de trabalhadores rurais, em Os Magros:
– João, hoje tem serviço de roçagem, mas como seu facão é mesmo que nada, não há serviço para você.
– Senhor Antônio, tenha paciência, não me deixe perder um dia…
– Mas com esse facão você não faz nada, homem. Por que não compra outro?
– Vou comprar… mas a questão é que a comida está pela hora da morte e não tenho podido. Nem roupa tenho comprado. A casa cheia de menino… O senhor quer me adiantar um dinheiro para comprar o facão?
João arrependeu-se do que disse. Toda a fazenda queria gente sem filhos. Os meninos, que já aguentavam puxar um burro manso, eram aproveitados na condução do cacau ou para descaroçar. Ganhavam ninharia mas iam servindo. Não deveria ter dito que possuía a casa cheia de meninos.
– Isso, não. Tenho ordens para não adiantar dinheiro. Quem manda ter muitos filhos?
Os outros trabalhadores fizeram ar de risos maldosamente, maldosamente.
– Então me arranje um serviço de enxada qualquer.
– Ora, senhor João, só se eu me virasse em serviço.
E João perdera o dia da semana. Lembrava-se como a farinha terminara antes da quinta-feira. Carne não houve. Os meninos morriam de fome. Remexiam o saco vazio como rato à cata de um grão. Desapareciam no mato à procura de uma fruta qualquer.
Empanzinavam-se de laranjas verdes. Os menores ficaram na saia de Isabel choramingando, catarrentos, pançudos, de barrigas necessitadas. O caçula, que ainda mamava, puxava as pelancas enxutas e protestava a ausência do leite.
Numa comovente narrativa, em Os Magros, há um confronto dos cenários extremos vividos entre as duas famílias ligadas pela relação com a terra (Fazenda Fartura), salientando o abismo social existente entre os trabalhadores rurais que com sua força de trabalho, produzia o capital acumulado pelos grandes proprietários de terras. A situação de necessidade extrema do agregado do Dr. Jorge, representada na obra de Euclides Neto, conota uma tentativa do escritor em denunciar as condições atrozes e desumanas praticadas numa região cuja lavoura cacaueira se destacava como o principal produto de exportação do Estado da Bahia. A partir de 1904, a produção da monocultura cacaueira superou a exportação do fumo; desta forma, ocupando o primeiro lugar no quadro de exportações, posição mantida até a segunda metade da década de 1970.
A falta da posse da terra era a causa da miséria de João e sua família; para seu filho Aprígio, a terra, utilizada por ele indevidamente como alimento, causava-o enfermidades. Com cerca de doze anos de idade, desde muito pequeno, o filho do agregado se alimentava de terra à revelia dos seus pais. O vício nutrido por ele era uma prática costumeira entre os filhos dos trabalhadores rurais durante a infância. Em Os Magros, o filho mais novo de João havia falecido em consequência do mesmo vício. Diante da desnutrição e da ausência de cuidados médico, o problema se agrava, complicando ainda mais a saúde de Aprígio.
Ao final do último capítulo, João se encontra desencantado com a vida como um anti-herói ao fim de sua saga inglória na luta pela sobrevivência. Conforma-se diante da situação de miséria, que considera uma sina. Um dos momentos mais frustrantes vivido por João foi sua última tentativa de adquirir a sua indispensável ferramenta de trabalho, o facão. Pois, a despeito de ter conseguido economizar os cento e cinquentas cruzeiros, ao comprar seu sonhado objeto, depara-se com um novo aumento do seu valor, impossibilitando-o de adquiri-lo, conforme o diálogo a seguir entre João e o vendedor do facão:
– Mas tem uma coisa. Não posso fazer o preço daquele dia.
– O quê?!…
– Nós tivemos um aviso da fábrica. Até nos propuseram a comprar os facões com estoque a duzentos cruzeiros.
– Mas mandei separar o meu.
– Bem, mas não marcou o prazo. Como já é negócio velho posso lhe fazer duzentos e vinte.
– Mas moço, tenha dó. Só trouxe os cento e cinquenta.
– Isso aqui não é meu, amigo. Pertence ao seu Josias. Sou empregado. Senhor Josias, que rabiscava contas na sobreloja, saiu, verificou a insignificância do freguês e sentenciou:
– Não perca tempo. Quer? Pode duzentos e vinte?… Se não quer, pronto. Desocupa. Só querem pechinchar.
– Meu amo…
– Nada, vocês nunca estão satisfeitos… Antigamente recebiam três cruzeiros por dia. Hoje têm vinte e cinco cruzeiros… Nada… Quer ou não quer?
– Se eu só tenho cento e cinquenta?
– Então pronto
E para o caixeiro:
– Guarda os facões…
– Espera aí, homem.
– Se o senhor não pode nem comprar… Nem roupa tem para vestir.
– É está certo…
Com a frustrante notícia do aumento no valor do facão, João caminha atordoado, sem esperança de dias melhores. Acuado pela algoz realidade, João é dominado pelo delírio neurótico, levando-lhe a vislumbrar uma saída para amenizar o seu sofrimento. Acredita que a morte seria seu acalanto. Se acima da terra sua vida foi de penúria. O descanso eterno abaixo dos sete palmos de terra poderia poupá-lo de mais sofrimento.
Em meio a seu estado de desespero e loucura, “guiado pelo ouro pagão” o agregado resolve buscar insanamente o lendário tesouro enterrado na Fazenda Fartura, escondido pelo Sr. Jerônimo, pai do Dr. Jorge. Pois, dessa forma, nutria-se a esperança de modificar aquela infeliz realidade que aniquilava sua família:
O ouro pagão vinha chegando, mostrando onde estava o dinheiro. Uma réstia de claridade bateu no pé do esteio. Agora poderia comprar facões, comida, roupa, sapatos e até um pedaço de terra. Nada diria à mulher. Quando voltasse da feira era com um cavalo encangalhado e os panacuns entupidos de trem.
Três quilos de carne verde bem gorda. Uma rabada de boi. E por que não procurava logo desenterrar a panela? Tudo dizia que ela estava ali. Até houve quem andasse esgaravatando o chão.
Nada acharam porque não levaram vela na cara da noite. (…)
João tirou o facão gasto e furou a terra. Ali estaria o dinheiro de que precisava. O língua de teiú arrancava pequenos blocos de barro que as mãos em pá iam limpando. (…)
Continuou cavando. Aos ouvidos chegavam os mugidos de bonina. O galo losna cantou três vezes e saltou do poleiro. O dinheiro estaria ali. Tudo indicava. Só faltava a vela acessa. Mas o filho que morrera pagão daria jeito a tudo.
Quando os galos amiudaram, João continuou cavando.
Milton Santos, em sua obra Zona do Cacau (1955), afirma que: “querendo classificar a região do cacau do ponto de vista alimentar, encontramo-la enquadrada entre as regiões de fome endêmica”.
Em Os Magros, a terra continua sendo o meio para a busca da dignidade do trabalhador apartado da sua posse. Na procura do suposto tesouro enterrado, representado por uma panela de dinheiro, vê-se João delirando em busca do desejado objeto dourado (panela) tão útil para o preparo do alimento tão escasso aos trabalhadores rurais despossuídos da terra.
Albione Souza –
Mestre em História- UNEB- Alagoinhas
e autor da obra Os Despossuídos da Terra
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