88,97% dos presos vítimas de tortura e maus-tratos em Salvador são negros

Foto: Reprodução
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Prisão, agressão e até tortura. Uma escalada de acontecimentos que, para pessoas negras presas em flagrante na capital baiana, não é novidade. Por aqui, 88,97% dos negros detidos nestas condições são vítimas de tortura e maus-tratos. O índice dessa mesma violência entre pessoas brancas é de apenas 1,96%. Em 9,05% dos casos de lesões, porém, não há qualquer informação sobre cor e raça das vítimas.

Os dados divulgados nesta segunda-feira (19) são do relatório anual dos Autos de Prisão em Flagrante na Comarca de Salvador, da Defensoria Pública do Estado Bahia (DPE-BA). E apontam para um outro detalhe que também é alarmante: a autoria das agressões. Entre os custodiados que foram vítimas, 60,71% atribuíram aos agentes de segurança, policiais militares ou civis, a responsabilidade pelos ferimentos.

Presidente da comissão especial de sistema prisional e segurança pública da Ordem dos Advogados do Brasil na Bahia (OAB-BA), o advogado criminalista Vinícius Dantas faz inspeções em presídios, vê a condição dos presos e conversa com eles.

Através dos relatos que escuta, ele diz que é impossível não ver relação entre a violência contra os custodiados e a cor/raça destes. “Não posso me furtar de falar que o tratamento para um indivíduo preso em uma certa localidade ou de uma determinada etnia é diferente do outro”, explica ele.

Professor de Processo e Prática Penal na Ufba, Misael França é pesquisador da área de ciências criminais e relações raciais. Ele diz que os dados estão em coerência com o anuário brasileiro de segurança pública.

“A população negra é a vítima central de violência e, principalmente, da violência policial em Salvador e todo o país. Há uma consonância infeliz no que diz respeito a essa constatação”, aponta França.

Dados silenciados

A constatação citada pelo professor poderia ser ainda pior.  É que em 87% dos autos de prisão em flagrante analisados pela DPE-BA em Salvador em 2021 não consta qualquer informação sobre tortura ou maus-tratos contra custodiados. Ou seja, nas audiências de custódia, onde o preso deveria ser ouvido, ele nem é perguntado sobre esse assunto.

França cita a Resolução 213 do ano de 2015, das audiências de custódia, para explicar a necessidade da pergunta. “Ela estabelece que deve ser questionado ao custodiado se sofreu algum tipo de violência. Além de ter atenção a sinais de tortura para que se possa ponderar a respeito da legalidade da prisão”, fala.

Assim como França, Sebastian Mello, advogado criminalista e professor de Direito Penal da Ufba, ressalta a importância da audiência. Porém, também pontua que, se essa informação não consta de forma sistemática nos autos, é preciso fiscalizar o que acontece.

“Uma vez que não há esse dado, a pergunta não é feita e o assunto é silenciado. Isso tem que ser perguntado em todo e qualquer ato de prisão pelo juiz. […] É preocupante que essa fiscalização não seja feita”, comenta ele, pedindo que os órgãos fiscalizadores estejam atentos.

Procurada para comentar a situação, a Corregedoria Geral da Polícia tem competência para receber e apurar denúncias sobre torturas e demais ilícitos atribuídos a policiais, mas não produz dados estatísticos. No entanto, admitiu que “é bastante importante termos dados estatísticos” em relação ao tema.

O Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) e o Ministério Público Estadual da Bahia (MPE-BA) foram questionados a cerca dessa fiscalização e se há projetos em curso para coibir a omissão dessas informações. No entanto, não responderam até o fechamento desta reportagem.A Secretaria da Segurança Pública da Bahia (SSP-BA) também foi procurada para falar sobre a situação e os registros de violência por parte de seus agentes. Porém, também não respondeu o contato.

Perfil dos presos

Outro dado do relatório que chama a atenção é o perfil das pessoas que são presas em flagrante na capital baiana. Dos 3.174 casos, 94,3% eram de homens e 97,3% eram negros. No que diz a cor e raça, o número apresenta uma redução em relação ao relatório de 2020, quando 98% dos presos em flagrantes pertenciam a população negra da capital.

Rafson Ximenes, defensor geral do DPE-BA,   analisa as informações em relação ao perfil dos presos em flagrante como alarmante. Mais do que isso, afirma que os dados confirmam o racismo inscrito que faz de todo negro um suspeito e impõe uma desigualdade social em relação aos brancos. “Com isso, a população negra se mantém mais vulnerável e alvo preferencial das políticas de segurança”, aponta.

Misael França adverte ainda que, de forma alguma, a porcentagem do perfil tem a ver com a maior existência de pessoas negras na cidade. A relação entre moradores e presos em flagrantes não tem a ver com proporcionalidade.

“É um argumento falacioso e utilizado até por quem compõe a segurança pública. Se essa fosse a justificativa, nós teríamos, nos espaços de privilégio e poder, a negritude representada. E não é isso que acontece”, completa. A reportagem procurou a UNEGRO para comentar os dados, mas não obteve resposta até o fechamento da reportagem.

Entre 2015 e 2021, a Defensoria analisou os autos de prisão em flagrante de 31.029 pessoas. Durante esse período o perfil das pessoas detidas foi majoritariamente de homens (94,2%), negros (98,3%), jovens com até 29 anos (65,53%) e com ensino fundamental incompleto (32,76%).

Um dado positivo do relatório é o fato do número de pessoas que voltaram a ser presas em flagrante no ano de 2021 ser o menor dos últimos três anos. A DPE/BA analisou 3.647 autos de prisão em flagrantes e verificou que em apenas 4,6% dos casos as pessoas voltaram a ser detidas no mesmo ano.

A taxa é menor que as registradas em 2020, quando o percentual esteve em 6,1% e  no ano de 2019, que foi registrada uma taxa de 7,2%.


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